Repercussão internacional

Lula merece julgamento justo, não perseguição

Para Geoffrey Robertson, referência mundial em causas ligadas aos direitos humanos, esse direito elementar vem sendo negado ao ex-presidente Lula na Operação Lava Jato
Lula merece julgamento justo, não perseguição

BSB, 24/04/2017 Presidente Lula recebe lideranças indígenas no Seminário de Estratégias para a Economia Brasileira: Desenvolvimento, Soberania e Inclusão Foto: Alessandro Dantas

Um julgamento justo —conduzido por um juiz imparcial, não contaminado por prejulgamentos, pressões políticas e caçadas midiáticas—é um direito de qualquer cidadão que viva sob o Estado democrático de direito. Para o advogado australiano Geoffrey Robertson, referência mundial em causas ligadas aos direitos humanos, é exatamente esse direito elementar que vem sendo negado ao ex-presidente Lula nos processos derivados da chamada Operação Lava Jato.

Robertson, que vive em Londres, celebrizou-se na defesa de causas relativas à liberdade de imprensa, direitos civis e direitos humanos e representa Lula na ação impetrada pelo ex-presidente na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA, contra os abusos da Lava Jato. Em artigo para a prestigiada revista norte-americana Foreign Affairs, ele denuncia os abusos cometidos por Sérgio Moro na condução da Operação Lava Jato e ressalta que as distorções decorrem principalmente do sistema judicial brasileiro, onde o mesmo juiz que conduz uma investigação é responsável pelo julgamento, o que atenta contra a isenção de um magistrado.

Leia a íntegra do artigo do advogado Geoffrey Robertson, em português:

O Caso Lula – ele merece um julgamento justo, não a perseguição

Por Geoffrey Robertson

Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula, permanece como um dos políticos mais populares do Brasil. O torneiro mecânico sem escolaridade que se tornou líder sindical ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, em 1980, antes de ganhar a Presidência do País em 2002 e 2006 por larga margem de votos.

Durante o governo de Lula, o Brasil tornou-se uma potência, conquistou a honra de sediar os Jogos Olímpicos de 2016 e retirou 40 milhões de pessoas da pobreza. A pesquisa de opinião mais recente mostra que ele permanece como o favorito para a disputa presidencial de 2018.

Desde 2016, porém, ele está sob investigação na esteira de uma campanha anticorrupção conhecida como Operação Lava Jato. Uma condenação o impediria de concorrer à Presidência.

Lula nega as acusações contra ele. Ele acredita que a investigação tem motivação política e muitos de seus compatriotas lhe dão razão: de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Paraná Pesquisas, 42,7% dos brasileiros concordam que Lula está sendo perseguido pela grande imprensa e pelo Judiciário em um movimento para impedi-lo de participar da disputa de 2018.

[blockquote align=”none” author=”Geoffrey Robertson”]O caso de Lula tem levantado questões fundamentais sobre o sistema judicial do Brasil: especificamente, se ele poderá ter um julgamento justo e se o País consegue preservar o direito ao devido processo legal aos acusados de corrupção.[/blockquote]

Até agora, seus acusadores não encontraram provas materiais que o liguem aos supostos crimes. Ainda assim, eles têm usado táticas agressivas, como vazamentos de grampos telefônicos de conversas com membros da família, para constrangê-lo. Nessas circunstâncias e em outras, o caso de Lula tem levantado questões fundamentais sobre o Sistema judicial do Brasil: especificamente, se Lula poderá ter um julgamento justo e se o País consegue preservar o direito ao devido processo legal aos acusados de corrupção.

O Brasil mantém um sistema antiquado de investigação e julgamento, herdado de Portugal e estabelecido no início do Século 19 — mas que o próprio Portugal já abandonou há tempos. Esse sistema não garante a separação de papéis do juiz que acompanha a investigação, supervisionando e autorizando os trabalhos da polícia a e dos promotores, o do magistrado que vai julgar o caso e deve apreciá-lo com isenção e sem ideias preconcebidas. No Brasil, as duas funções exercidas pela mesma pessoa, mesmo que, no caso Lula, tenha-se registrado ao longo do processo de investigação manifestações preconceituosas do juiz contra o investigado.

No caso Lula, a pessoa que acumula as duas funções é Sérgio Moro, um juiz federal de primeira instância de Curitiba. Moro não apenas supervisiona a investigação, autorizando todas a as buscas, apreensões e grampos, mas também está responsável pelos vários julgamentos do ex-presidente. Tudo isso apesar de várias vezes já ter especulado publicamente sobre a culpa do ex-presidente.

Moro chegou ao ponto de comparecer ao lançamento do livro “Operação Lava Jato”, do jornalista Vladimir Netto, que oferece uma versão negativa de Lula. Durante o evento, o juiz autografou cópias do livro e posou para fotos. Cenas como essas seriam impossíveis no sistema de justiça anglo-americano, que é rigoroso em isolar os julgadores do processo investigativo.

Mesmo na Europa, onde juízes também exercem papel investigativo, magistrados não podem julgar pessoas cuja culpa eles já tenham sugerido ou afirmado. E nenhum juiz, nem na Europa, nem nos EUA, consideraria apropriado referendar a demonização de um homem a quem ele vai julgar.

O envolvimento de Moro no caso vem de 2014, quando a polícia descobriu que um lava jato abandonado, em sua jurisdição, estava sendo usado para lavagem de dinheiro. Sob a direção de Moro, a investigação subsequente foi ampliada e passou a contar com 200 agentes, entre policiais e procuradores. Esses procuradores alegam que dirigentes da Petrobras tinham um longevo conluio com um cartel de empreiteiras para montar contratos fraudulentos e superfaturados.

Esses dirigentes seriam supostamente remunerados por propinas e repassariam parte desses valores para uma série de políticos—à direita e à esquerda—para financiar campanhas eleitorais.

[blockquote align=”none” author=””]Diversos juristas e outros observadores criticaram as táticas intrusivas de Moro, argumentando que, em seu zelo para incriminar Lula, ele descumpriu a lei.[/blockquote]

Há cerca de um ano, a investigação chegou a Lula, a partir da alegação dos procuradores de que, desde que deixou a Presidência, ele vinha recebendo presentes de uma das empreiteiras do cartel implicado na Operação lava Jato. Desde então, Moro ordenou a apreensão de propriedades de Lula, suas contas bancárias esquadrinhadas e as conversas telefônicas mantidas por ele com a família e os advogados foram grampeadas.

Mesmo assim, os investigadores não descobriram bens ocultos ou contas no exterior. Desde que deixou o cargo, Lula vive em um apartamento pequeno e modestamente mobiliado, próximo a São Paulo, o mesmo em que morava antes de se tornar presidente que habitou antes de se tornar presidente. Ao longo de seus dois mandatos, nem ele nem sua esposa receberam outros benefícios que não o seu salário presidencial e os presentes rotineiramente concedidos a um chefe de Estado. Não há provas de que qualquer ação ou decisão tomada por Lula no exercício da Presidência que tenha sido motivada pelo recebimento ou promessa de dinheiro ou presentes.

Diversos juristas e outros observadores criticaram as táticas intrusivas de Moro, argumentando que, em seu zelo para incriminar Lula, ele descumpriu a lei. Esses críticos citam como exemplo o mandado expedido por Moro, em março do ano passado, para a condução coercitiva de Lula, uma forma de coerção que os juízes devem usar apenas se um suspeito se recusar a cumprir uma intimação para depor.

Lula sempre cooperou com a investigação, respondendo as perguntas dos investigadores. Quando a polícia chegou à sua casa para cumprir o mandado de condução coercitiva, às seis da manhã, o ex-presidente se ofereceu para ser interrogado lá – mas os policiais recusaram e forçaram-no, sob pena de prisão, a acompanhá-los a um complexo policial no Aeroporto de Congonhas, onde ficou detido para interrogatório por quatro horas. As notícias de sua detenção foram vazadas para a mídia e manifestantes anti- Lula, que apareceram em massa ao aeroporto. Apesar de seus esforços de boa-fé para atender as autoridades, o espetáculo criou a impressão de que Lula não estava cooperando e que ele tinha algo a esconder.

Menos de duas semanas depois, Moro entregou à mídia cerca de 50 gravações de áudio derivadas de interceptações de conversas telefônicas entre Lula e sua família, amigos e advogados. De acordo com a lei brasileira, os grampos telefônicos são permitidos apenas como último recurso – o que não era o caso – e as gravações devem ser mantidas em segredo. Ainda mais perturbadoras, as fitas incluíram uma conversa entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff que haviam sido gravadas ilegalmente.

[blockquote align=”none” author=””]Em qualquer outra democracia, tais táticas – levantar a animosidade pública contra um suspeito através de vigilância ilegal e divulgação pública dos resultados dessa vigilância – iriam inevitavelmente tirar um juiz de um caso.[/blockquote]

Moro havia ordenado a suspensão do grampo telefônico às 11:00 horas do dia 16 de março do ano passado, porque o mandado havia expirado. Além disso, nenhuma das chamadas interceptadas tinham fornecido qualquer prova incriminatória. No entanto, as escutas continuaram, ilegalmente, capturando uma conversa entre Lula e Dilma, naquele dia, 13:30h. (Divulgada, essa conversa suscitou muita controvérsia, pois incluiu uma discussão sobre se a presidente deveria nomear Lula como ministro, concedendo-lhe assim um certo grau de imunidade).

Em abril, o Supremo Tribunal Federal desautorizou Moro no caso da libração das escutas telefônicas aos meios de comunicação, em violação à Constituição. Moro respondeu oferecendo suas “desculpas respeitosas” por violar a regra de que apenas a Corte Suprema – e não um juiz de primeira instância, como ele – pode investigar legalmente um presidente em exercício. No entanto, Moro não recebeu mais nenhuma censura, apesar de que em qualquer outra democracia, tais táticas – levantar a animosidade pública contra um suspeito através de vigilância ilegal e divulgação pública dos resultados dessa vigilância – iriam inevitavelmente tirar um juiz de um caso.

Em julho de 2016, Lula apresentou uma queixa ao Comitê de Direitos Humanos da ONU – um caso em que eu o represento – argumentando que Moro não só abusou de seu poder como também violou os direitos civis e políticos do ex-presidente. O primeiro julgamento de Lula começou em novembro de 2016, e a sentença é esperada para julho de 2017. Antes do início do julgamento, Lula tentou repetidamente afastar Moro do processo, alegando que o juiz é parcial, mas essas moções foram negadas – a maioria pelo próprio Moro.

Ao longo de todo o ano passado, Lula foi estampado várias vezes na capa da revista de direita “Veja”, em fotos manipuladas que o exibem em trajes de presidiário. Essas imagens foram reproduzidas em massa em balões e bonecos, que são exibidos em demonstrações de direita. As autoridades não mostram nenhum interesse em parar o que se tornou um comércio lucrativo empurrando a ideia de que Lula já foi considerado culpado.

Nada do que digo pretende sugerir que Lula esteja ou deva acima da lei. Ele próprio é o primeiro a apontar essa realidade. Mas o tratamento dado ao ex-presidente — sua detenção desnecessária, seu julgamento por um juiz que parece ser tendencioso, as escutas telefônicas, a violação de sua privacidade através da liberação das chamadas para a mídia — restringe as liberdades civis que ele — e todos os outros brasileiros — têm garantidas pelas leis e pela Constituição do país.

[blockquote align=”none” author=””]O sistema de agências independentes para investigar casos de corrupção permitiu que diversos países punissem os responsáveis sem demonizar publicamente e humilhar suspeitos no processo, nem levá-los a julgamento diante de um juiz que participou da investigação[/blockquote]

Para evitar tais abusos no futuro, o Brasil precisa adotar um novo modelo para lidar com tais casos. O melhor modelo é que foi pioneiro em Hong Kong e também usado na Austrália, Cingapura e em outros lugares. Nesses países, uma agência independente e com recursos adequados (chamada Comissão Independente Contra a Corrupção, ou ICAC, em Hong Kong) investiga supostas irregularidades cometidas por políticos, servidores públicos e empresas estatais. Esses organismos têm plenos poderes de vigilância, intimação e detenção e podem realizar audiências públicas.

Para garantir que o trabalho dessas agências permaneça isento e apartidário, esses órgãos são supervisionados por um comitê externo. Quando a ICAC ou suas homólogas concluem que cabem acusações criminais contra os investigados, as acusações são investigadas por promotores e todas as provas recolhidas são submetidas a juízes imparciais que não estiveram envolvidos na investigação. Esse sistema permitiu que Hong Kong e outros países que o utilizam punissem os funcionários públicos sem demonizar publicamente e humilhar suspeitos no processo, nem levá-los a julgamento diante de um juiz que participou da investigação.

A corrupção – especialmente a corrupção política – deve ser processada eficazmente. Mas, a menos que seja processada de forma justa, respeitando os direitos humanos dos suspeitos, tais esforços serão contraproducentes, resultando em erros judiciais e limitando a cooperação dos suspeitos com as autoridades.

Se há provas de que Lula se beneficiou da corrupção, ele deve responder por isso – mas em um processo justo diante de um juiz imparcial. Moro e o preconceito provocado pela mídia brasileira tornaram isso impossível. O caso deve, portanto, ser retirado do Moro e entregue a uma comissão imparcial do tipo ICAC – não para proteger políticos corruptos ou os ladrões das empreiteiras, mas por causa do Estado de direito e dos direitos humanos e impedir que os processos se transformem perseguições.

Para o texto original, em inglês, siga o link
Foreign Affairs – The Case for Lula – He Deserves a Fair Trial, Not Persecution

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