A “reportagem”, digamos assim, tem um texto longo, repleto de insinuações maliciosas combinadas com informações requentadas que são de domínio público há mais de 15 meses. Trata-se, sobretudo, de texto profuso e inconsistente, no qual ilações fantasiosas substituem os fatos, algo pouco apropriado à comunicação jornalística. Parece mais um pastiche de algum imitador pouco talentoso de Cervantes tentando escrever uma novela policial.
O subtexto, contudo, é bastante claro. Mercadante teria obtido seu título de doutor indevidamente, já que a tese é baseada em livro anteriormente publicado e sua aprovação foi facilitada por uma banca “banguela”, composta basicamente por “amigos”.
Pois bem, o fato da tese apresentada estar baseada no livro “Brasil: A Construção Retomada”, publicado meses antes, é um segredo da carochinha, ao contrário de ser uma “revelação”, como chegou a ser divulgado. Isso foi devidamente registrado, como a própria reportagem reconhece, na introdução da tese de Mercadante. O orientador sabia, a banca sabia, a Unicamp sabia e os que assistiram à defesa da tese, inclusive os jornalistas, sabiam. O próprio Aloizio Mercadante levou um exemplar do livro para a sua arguição, como demonstra, aliás, foto que consta da reportagem. No dia seguinte à defesa, 18 de dezembro de 2010, o Brasil inteiro soube. Aparentemente, só o autor da “reportagem” ainda não dispunha dessa informação.
Todos os envolvidos também sabiam que apresentar tese baseada em livro é perfeitamente condizente com as regras acadêmicas. A Unicamp exige somente que o trabalho tenha “contribuição original em campo de conhecimento determinado”. No entanto, a matéria pontifica que a tese foi aceita mesmo “sem uma contribuição ao conhecimento que pudesse ser considerada original”.
Bem, uma afirmação desse tipo, pedante e peremptória, demanda, normalmente, um cuidado essencial: a leitura da tese. Evidentemente, o autor da matéria não se deu ao trabalho de ler uma única vírgula, nem do livro publicado, nem da tese. Se o tivesse feito, teria verificado que a tese se debruça sobre temas teóricos e análises econômicas, políticas e sociais que estão ausentes do livro publicado, cumprindo, assim, com as exigências acadêmicas pertinentes. A sua estrutura é bem diferente da estrutura do livro. Ela tem seções teóricas que não existem no livro, e, por outro lado, a obra publicada tem capítulos que não estão na tese. Até mesmo as séries históricas dos dados empíricos utilizados são diferentes. Uma simples, rápida e descomplicada consulta aos índices de ambas as obras permitiria verificar essas diferenças.
Caso o autor da “reportagem” tivesse lido a tese, teria verificado também que a versão definitiva que foi publicada no site da Unicamp incorpora várias das sugestões feitas pela banca, na árdua arguição. Com efeito, a banca supostamente “banguela” fez, como a própria reportagem menciona, muitos questionamentos, alguns bastante duros, que foram levados em consideração, na elaboração do texto definitivo da tese. Aliás, a reportagem se compraz em mencionar, um por um, todos esses questionamentos, sem, no entanto, mostrar as respostas de Mercadante, as quais foram levadas em consideração para a obtenção do título de doutor, tal como ocorre em qualquer defesa de tese.
Mas não são somente as respostas que estão ausentes da reportagem. Na realidade, o grande ausente da matéria é seu suposto objeto: a tese de Mercadante. No melhor estilo “não li, e não gostei”, a reportagem fala sobre tudo, menos sobre o conteúdo real da tese. Nela, a única informação relevante sobre a tese de Mercadante é de que ela elogia o governo Lula. Isso é o suficiente. Isso é o suficiente para desqualificá-la. Isso é o suficiente para retirá-la do debate público. Isso é o suficiente para agredir pessoalmente o autor, o orientador da tese e os membros da banca.
De fato, no afã de desqualificar tudo o que cheire a um mínimo reconhecimento do governo Lula, a “reportagem” não teve sequer o cuidado de poupar grandes intelectuais do Brasil, figuras de projeção nacional e internacional como Maria da Conceição Tavares, Delfim Neto, Luiz Carlos Bresser Pereira e José Manuel Cardoso de Melo. Todos dispensam apresentações. O autor da matéria, no entanto, parece não conhecê-los, pois supõe, em seu delírio, que eles poderiam comprometer seu enorme prestígio intelectual e pessoal apenas para agradar Mercadante.
Ricardo Abramovay, um dos grandes sociólogos do país, cuja tese de doutorado foi escolhida pela ANPOCs como a melhor tese de ciências sociais de 1991, é apresentado simplesmente como “o pai de Pedro Abramovay”, que foi secretário nacional de Justiça no governo Lula. Mariano Francisco Laplane, o orientador, que concluiu seu mestrado em Berkeley sob a orientação de ninguém menos que Manuel Castells, obteve o título de doutor na Unicamp e fez um prestigioso pós-doutorado em Oxford, aparece, no libretto giocoso elaborado pelo autor da matéria, fundamentalmente como um mero “amigo” de Mercadante. No caso de Laplane, a “reportagem” rompe com qualquer resquício de decência e insinua que a aprovação da tese de Mercadante teria sido recompensada por um cargo no Centro de Gestão e Estados Estratégicos (CGEE), embora tenha recebido todas as informações que comprovam que o nome de Laplane foi selecionado por um Comité de Busca e aprovado, de forma unânime, por um colegiado composto por membros de várias instituições, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências. A tentativa de, levianamente, envolver essas instituições no complô fabricado pelo autor da peça “literária” é inaceitável.
Na ópera-bufa encenada na “reportagem”, todos esses respeitados intelectuais, de matizes ideológicos muito diferentes, aparecem como personagens duvidosos de um enredo caviloso destinado a conceder, de forma imprópria, o título de doutor a Mercadante. Como “provas”, se mencionam algumas amizades comuns e simpatias políticas. O fato concreto é que, da banca examinadora, apenas Ricardo Abramovay, suplente de Maria da Conceição Tavares, que não conseguiu comparecer, pode ser considerado “amigo” de Mercadante. Delfim Neto e Luiz Carlos Bresser Pereira, que também aprovaram a tese, jamais foram amigos de Mercadante. Por outro lado, não temos conhecimento de bancas examinadoras compostas por desafetos pessoais e políticos. Se Mercadante é amigo ou conta com a aprovação de alguns grandes intelectuais, ponto para ele. Observe-se que, à exceção de Maria da Conceição Tavares, que não participou da banca, nenhum desses intelectuais jamais foi membro ou militou pelo PT. Luiz Carlos Bresser Pereira, diga-se de passagem, foi um dos fundadores do PSDB. É inacreditável que a “reportagem”, na ânsia de desqualificar a tese não lida de Mercadante tenha procurado atacar, de forma tão baixa, pessoas tão qualificadas.
Talvez se Mercadante tivesse apresentado uma tese apenas com severas críticas ao governo Lula, a matéria fora de outro cariz, possivelmente com rasgados encômios ao autor, ao orientador e aos membros da banca.
A bem da verdade, a tese de Mercadante também analisa alguns gargalos, não suficientemente enfrentados pelo governo Lula, ao crescimento brasileiro e faz severas advertências sobre a possibilidade da interrupção do novo ciclo de desenvolvimento do país. O autor, caso tivesse lido a tese, poderia, ao menos, ter salientado esses pontos da obra, conforme as suas conveniências políticas.
É pena que revistas como Época não tenham se empenhado em promover um debate público sobre a tese. Debater idéias e argumentos é sempre uma boa forma de promover a democracia e nos engrandecer como cidadãos. Já atacar, em nível pessoal, quem tem posições discordantes, como faz o autor da “reportagem”, não engrandece ninguém. Como bem disse Gore Vidal a respeito de alguns republicanos, eles são pequenos, eles só são competentes para difamar pessoas.
Época e seu público mereciam algo melhor. Não custava muito. Bastava ter lido um dos parágrafos finais da obra, o qual afirma que:
…um dos objetivos desta tese é se contrapor à má-fé intelectual que se apoderou de alguns meios conservadores. Esperamos ter tido êxito, pelo menos nesse aspecto.
Pelo visto, Mercadante fracassou. Ainda tem gente que prefere a má-fé. Sem distinção.