O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) já se provou como ferramenta eficaz e inclusiva na seleção de estudantes para ingresso nas universidades públicas e privadas.
Quando digo que o Enem é inclusivo, porém, não estou afirmando que ele seja igual para todos. No país que registra o segundo maior índice de desigualdade do mundo — perdemos apenas para o Qatar — nada autoriza que consideremos qualquer situação como “igual para todos” no Brasil.
A porta é a mesma, mas a distância que um filho da classe média alta precisa percorrer para tentar atravessá-la é infinitamente mais curta do que a que se agiganta diante do filho da diarista, submetido a uma verdadeira corrida de obstáculos postados em seu caminho pela precariedade da escola pública na periferia, da falta de acesso a materiais didáticos e extra-classe, da incerteza até mesmo sobre a refeição antes de ir deitar.
Ao insistir em manter o calendário do Enem como se nada de grave estivesse acontecendo no mundo, o ministro da Educação Abraham Weintraub criou a sua versão particular de negacionismo da crise do coronavírus e, de quebra, aprofundou ainda mais a desigualdade de condições de concorrência para a maioria de estudantes pobres que vai tentar uma vaga no ensino superior por meio do Enem 2020.
Para Weintraub, “o coronavírus atrapalha um pouco, mas atrapalha todo mundo”. Para o responsável maior pelas políticas públicas de Educação, os transtornos decorrentes da maior emergência sanitária dos últimos 100 anos atingem a todos por igual. “Como o Enem é uma competição, é justo”, afirmou o ministro em uma live no Facebook — desta vez, felizmente, nos poupou do guarda-chuva, mas não da tempestade de equívocos.
O raciocínio de Weintraub — “Quer passar no Enem, continue estudando” — talvez funcione na Escandinávia. No Brasil, “continuar estudando” tem significados muito diferentes, a depender da posição do aluno na pirâmide social.
Quero crer que o ministro esteja ciente de que as aulas estão suspensas em todo o País, sem previsão de retorno. Como vão “continuar estudando” os filhos de 70% dos lares das classes D e E que não têm acesso à internet?
Esses jovens estão excluídos até mesmo dos esforços de seus professores da rede pública para viabilizar teleaulas, muito mais à base do improviso e da vontade, com praticamente nenhuma orientação do Ministério da Educação.
O País sequer sabe se o calendário escolar de 2020 será cumprido antes da data arbitrada pelo MEC para a realização do Enem.
Insistir em manter o cronograma do exame afronta o princípio constitucional da isonomia. Ignora o respeito às diferenças entre as pessoas, fatos e situações prescritos na nossa Carta Magna.
Para “atrapalhar a todo mundo” com o mínimo de igualdade, como deseja o ministro, a crise do coronavírus deveria ser encarada como motivo inescapável para o adiamento do Enem 2020, como defendem as Bancadas do Partido dos Trabalhadores no Congresso.