A votação do Senado que resultou na manutenção da prisão do senador Delcídio do Amaral foi o desfecho de mais um caso em que a mídia atuou como um vetor da produção legislativa no Brasil, a partir de uma realidade caricaturada dos fatos.
Senado e Supremo Tribunal Federal (STF) renderam-se à “máquina de amesquinhamento que transforma a política no avesso de suas virtuosas possibilidades, que joga para a plateia e sucumbe à ‘opinião pública’.”, afirma a assessora jurídica Tânia Maria de Oliveira*.
No artigo “Dois erros, nenhum acerto: a apreciação da prisão do senador Delcídio do Amaral”, publicado no site Empório do Direito, Tania, que é assessora técnica da Liderança do PT no Senado aponta como as normais constitucionais foram manipuladas desde o pedido de prisão preventiva expedido pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, até a decisão do plenário da Casa.
Confira a íntegra do artigo “Dois erros, nenhum acerto: a apreciação da prisão do senador Delcídio do Amaral”:
Ainda sob o impacto da decisão tomada na quarta-feira (25/11) no plenário do Senado, que se posicionou pela manutenção da prisão do senador Delcídio do Amaral, decretada pelo Supremo Tribunal Federal na manhã do mesmo dia, lembro, inexoravelmente, da mais famosa obra do pensador francês Guy Debord, quando, ao definir as sociedades contemporâneas como “sociedades do espetáculo”, afirmou que a representação tornara-se a principal forma de se dialogar com as experiências da vida, e a imagem apresenta-se como o mecanismo mais eficaz de tradução da realidade. No Brasil, cada vez mais, o que é veiculado pela mídia, em formato e conteúdo, tem o poder de definir os rumos das decisões tomadas dentro dos poderes legalmente constituídos.
O que se viu quarta-feira na chamada Câmara Alta do parlamento brasileiro foi a evidência de um comportamento que se pauta pela repercussão que teria o voto dado, não pelo que poderia possuir de virtuoso, mas pela interpretação a ele conferida pela imprensa. Nesse jogo, em que a definição sobre ser fechada ou aberta a votação foi o ponto nodal sobre o qual se assentou o destino do senador preso, não resta qualquer dúvida de que parlamentares expressam sua vontade de uma forma quando acobertados pelo sigilo do voto e de outra quando esse é exposto. Sobre o tema, não são poucos os intelectuais que se debruçam em estudos que demonstram como a mídia se transformou num vetor da produção legislativa no Brasil, o que se apresenta significativamente acentuado quando se trata de leis penais, em regra aprovadas em razão da cobertura que os meios de comunicação destinam a determinados episódios.
O sempre mencionado princípio da separação dos poderes, previsto na Constituição da República, elencando que são independentes e harmônicos entre si, existe para impedir as ingerências de uns em outros. Não implica, por óbvio, que o Judiciário ou o Executivo não possam ter influência nas decisões legislativas e vice-versa. Significa que no sistema de freios e contrapesos há um controle recíproco entre os poderes, de modo a evitar a exorbitância e estabelecer os limites da atuação de cada um. O que ocorreu na quarta-feira foi um poder – Judiciário – extrapolou em muito suas atribuições, burlando norma clara e explicita do documento que jurara defender, enquanto outro – Legislativo – abriu mão de sua prerrogativa de restabelecer a normativa constitucional. Tudo feito no temor da fúria social, provocada pela divulgação midiática de uma versão torpe e distorcida de que quem votasse para revogar a ordem do Supremo Tribunal Federal estaria defendendo os atos praticados pelo senador Delcídio do Amaral.
A redação do art. 53, § 2º, da Constituição Federal possui o seguinte dispositivo: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.” É de uma clareza meridiana.
Fazendo jogo de palavras em decisão propositadamente confusa que parece querer transformar prisão preventiva em flagrante, o ministro Teori Zavaski não conclui onde estaria a inafiançabilidade do suposto crime. A 2ª Turma do STF, reunida extraordinariamente poucas horas após a ordem de prisão, para referendar a decisão do relator, fechou o círculo do jogo combinado na véspera, em exercício coletivo do mais desconexo veredito já tomado: crime permanente em virtude de integrar organização criminosa, que admitiria o flagrante. Se os atos são causa de decretação de prisão preventiva também tornam o crime inafiançável. Então a soma de crime permanente com a situação de inafiançabilidade, que por seu turno é motivo para decretação da preventiva, configuram a prisão em flagrante. É possível ficar zonzo tentando encontrar o encadeamento dado pelos juízes para o enquadramento no art. 53, §2º, da Constituição, na extraordinária tentativa de tentar dar uma aparência de legalidade à prisão.
A maior evidência de que o Supremo Tribunal Federal fez uma interpretação do dispositivo constitucional isolado e descolado daquele adotado pela própria Corte se distanciando dos princípios e do que propôs o legislador são as razões do próprio Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, ao pedir a prisão preventiva.: “A Carta Magna não pode ser interpretada de modo a colocar o Supremo Tribunal Federal, intérprete e guardião máximo da Constituição Federal, em posição de impotência frente à organização criminosa que se embrenhou dentro do Estado…. “A interpretação literal do § 2º do art. 53, descontextualizada de todo o sistema, transformaria a relevante garantia constitucional da imunidade parlamentar em abrigo de criminosos, os quais vêm sabotando relevante investigação criminal e instrução processual em curso”.
Sim, nesses termos o PGR pediu a prisão preventiva (não em flagrante) de um senador: pugnando por uma nova interpretação do artigo que a veda.
Diante da evidente dificuldade de sustentar as bases legais de seu pedido, ele conclui com pedidos alternativos: “caso se entenda descabida a prisão preventiva do congressista, em razão da vedação constitucional, o Procurador Geral da República requer a imposição cumulativa de um conjunto de medidas cautelares…”
Por mais aberrante que pareça, em princípio, dizer que a Corte competente para analisar a constitucionalidade de normas tenha, ela mesma, arbitrado em contrariedade à Carta Política, fato é que a decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou a prisão do senador é claramente inconstitucional. Sobram juristas, sejam juízes, advogados, professores universitários de Direito Constitucional ou Processual Penal a afirmá-lo nos portais, redes sociais e periódicos dos últimos dois dias. Mas o significante para este texto é o papel que o Senado da República, como representante do Poder Legislativo, optou por desempenhar no processo: a de obediente espectador da burla constitucional e carimbador de decisão do STF. E o fez da forma mais distorcida possível, em um debate com muitos de seus membros elogiando o senador Delcídio por seus méritos como articulador político e lamentando que tenha sido “justo ele”, outros quase pedindo desculpas por votar pela manutenção da prisão, como se fora uma decisão vinculada às relações interpessoais.
A distorção se dá nos dois extremos. Em primeiro lugar, por mais que se possa prantear por um colega que fora flagrado em atos claramente antiéticos, esbanjando fanfarrice, fazendo promessas de tratativas para tentar burlar e impedir uma investigação criminal em curso, tal não deveria se dar por ser ele um sujeito simpático, de bom trato e diálogo, mas porque a prática ofende a atividade política coletiva. Por outro lado, o que estava em jogo era a definição do papel institucional do Senado para restabelecer a aplicação correta de um dispositivo constitucional violado. Não era um senador que estava sendo julgado, mesmo porque a competência para julgar crimes comuns de parlamentares é do STF. Por mais que a consequência da decisão se relacione à liberdade do senador Delcídio, o que estava em jogo eram as instituições, os “check and balances” ou, no limite, a nossa ideia de democracia e o respeito ao Estado de Direito.
Esse o desabafo do senador Renan Calheiros, presidente do Senado, ao mostrar a contrariedade com o mandado de segurança impetrado no mesmo STF pelo senador Randolfe Rodrigues para definir a modalidade da votação, que teve liminar deferida pelo ministro Edson Fachin:
“Quando o arquiteto fez essa praça aqui, a Praça dos Três Poderes, ele não colocou nenhum Poder no meio, no centro. Ele colocou cada um dos Poderes em um lado: de um lado fica o Palácio do Planalto, do outro lado fica o Supremo Tribunal Federal, e do outro lado fica o Poder Legislativo. Acho que a ocupação desses espaços deve ser feita harmonicamente, com independência. E acho que é indevido atravessarmos, grilarmos função de qualquer Poder, do Legislativo ou do Judiciário. Da mesma forma que me cabe, como presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, defender, mesmo que essa não seja a decisão da maioria da Casa – e eu me curvo à decisão da maioria da Casa –, as prerrogativas do Senado Federal.”
Quanto ao mérito do debate sobre a revogação da prisão, oportuno repisar as palavras do senador Humberto Costa, líder do PT no Senado ao encaminhar o voto da bancada:
“É óbvio que tudo que veio a público hoje é de extrema gravidade, e a investigação precisa ser aprofundada. Ninguém aqui está discutindo apoiar as atitudes ou eventuais ações que o senador Delcídio possa ter tomado, por mais que possamos ter por ele apreço. Não! Não é isso que está em discussão.
O que está em discussão é se um Poder pode mandar prender um parlamentar no exercício do seu mandato, que é o que diz a Constituição. Se nós queremos mudar a Constituição, mudemos. Mas é isso que ela diz, e é isso que está ligado à inviolabilidade do mandato. Imaginem se, a partir de agora, os tribunais de Justiça resolverem, por alguma razão, passar a mandar prender deputados estaduais, ou outros aqui, ou outros lá, na Câmara dos Deputados, sem que isso seja no entendimento de que foi efetivamente um flagrante. É isso que está sendo colocado neste momento.
O que nós estamos defendendo aqui é um princípio da democracia, por mais que as pessoas possam não entender. Posso estar até dando adeus hoje à minha vida pública – creio que não –, mas não poderia jamais dar adeus à coerência e à defesa da democracia. ”
O ofertado como resultado foi, contudo, o oposto do que pregou o parlamentar. Funcionou a máquina de amesquinhamento que transforma a política no avesso de suas virtuosas possibilidades, que joga para a plateia e sucumbe à “opinião pública”. O Senado optou por não fazer o debate do que efetivamente estava em pauta. Em total contrassenso, ao defender a manutenção da prisão, discursaram os senadores como se estivessem julgando os atos praticados pelo colega, o que, efetivamente, não lhes caberia apreciar, ao menos nesse momento. Deixaram, por outro lado, de verificar se suas prerrogativas como instituição foram usurpadas, o que lhes era obrigação fazer. Cumpriram, nesse sentido, o ritual político que agrada, dando combustível para a mídia tratar de forma perversa quem ousara divergir, criando uma realidade caricaturada das intenções e uma realidade apartada para que a sociedade se solidarize e reforce a decisão da maioria, segundo os critérios de julgamento e justiça ao sabor de seus conceitos manipuladores.
O precedente aberto não possui, ainda, parâmetros definidos. Mas por certo o STF operou uma flexibilização de garantia fundamental constitucional de que tem poder, a partir do novíssimo paradigma, para efetuar prisões de senadores ignorando os requisitos do art. 53, § 2º, da Constituição Federal. Deu um significante passo no caminho já aberto há pelo menos uma década em que a sociedade observa impotente a um governo dos juízes, em que as grandes decisões políticas vão se deslocando do âmbito do Legislativo e do Executivo para o do Poder Judiciário. E ao oposto do que se possa supor, não se trata de garantia ou de avanço institucional; ao contrário, trata-se de retrocesso perigoso. E o Senado Federal agiu como seu avalista, o que implica afirmar que mais de cem anos depois a célebre frase de Rui Barbosa, de que ao Supremo cabe errar por último, fora confrontada.(1)
Sim, o Supremo errou, mas desta feita o último erro não lhe pertenceu. O último erro coube ao Senado.
Notas e Referências:
DEBORD, G.: A Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro. Ed. Contraponto, 1997.
(1) “em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. O Supremo Tribunal Federal, não sendo infalível, pode errar. Mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, a alguém deve ficar o direito de decidir por último, de dizer alguma coisa que deva ser considerada como erro ou como verdade.” (BARBOSA, Rui. Plenário do Senado, sessão de 29 de dezembro de 1914)
Artigo originalmente no site Empório do Direito no dia 29 de novembro de 2015
* Tânia Maria de Oliveira é assessora jurídica da Liderança do PT no Senado.