ARTIGO

Marcio Pochmann: Para onde vai o trabalho

Pela atual presença do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho enquanto consumidor de bens e serviços digitais, as possibilidades do trabalho decente são mínimas
Marcio Pochmann: Para onde vai o trabalho

Foto: Milhai Cauli

O projeto ocidental de construção do povo da mercadoria ultrapassou cinco séculos de existência no interior das terras até então habitadas pelos povos indígenas há vários milênios. Durante todo esse período histórico, três módulos distintos de uso do trabalho foram impostos ao que se constituiu como Brasil.

Inicialmente, trazido pelo colonizador português, o módulo do trabalho forçado foi estabelecido por quase quatro séculos. Através da inserção colonial, a denominada escravidão moderna permitiu fomentar a primeira cadeia global de valor durante a longa fase mercantilista, antecipadora do sistema capitalista no mundo.

Isto porque a colônia portuguesa de exploração definida no interior do continente ameríndio se formou como entreposto colonial que sem instituições regulatórias operou com a brutalidade e fúria humana sem paralelo histórico. A integração do continente africano à expropriação violenta da mão de obra escrava na colônia da América portuguesa permitiu extrair da natureza, as mercadorias que beneficiassem fundamentalmente o continente europeu.

As decisões externas eram impostas pela presença direta da metrópole portuguesa na colônia que estabelecia o quê, quanto e como produzir no interior do domínio colonial. A sequência do trabalho forçado, inclusive mantido na forma da segunda escravidão, mesmo com a independência nacional, serviu à oligarquia agrarista sustentada por nefasta monarquia.

Assim como a escravidão degradou o trabalho, sem liberdade e sem valorização, a população negra foi aviltada, tratada como seres inferiores. Eram tratados, tão somente, como servis à produção da riqueza que atendesse aos interesses externos e de uma minoria branca que interiorizava o seu domínio impositivo pela força bruta.

A consolidação do capitalismo a partir do final da década de 1890, após quase meio século de transição escravista, fez emergir o segundo módulo do trabalho, agora considerado livre. Desde o seu início, contudo, a superabundância da mão de obra foi viabilizada pelo financiamento público para atrair levas de imigrantes europeus, além das necessidades econômicas da época.

Em pleno Estado liberal, a população negra, ex-escrava, ficou praticamente à margem da formação do mercado de trabalho, especialmente nas regiões cujos setores econômicos eram os mais dinâmicos, como no Centro Sul do país. Assim, o aparecimento da sociedade de classes no capitalismo nascente se fundamentou no acirramento da concorrência extremamente desigual por alguma forma de rendimento a custear a reprodução da força de trabalho, tornando-se obstáculo à organização sindical e à valorização laboral.

Mesmo assim, a construção da sociedade do trabalho assalariado assumiu protagonismo, sobretudo durante o projeto tenentista de modernização capitalista pela industrialização e urbanização nacional. Com a Revolução de 1930, a relação salarial foi gradualmente se tornando dominante, especialmente fundamentada pela conversão da massa de trabalhadores inorgânicos situados no meio rural em proletários urbanos, crescentemente contemplados por direitos sociais e trabalhistas e organização sindical.

O acesso à carteira do trabalho se fez acompanhada da mobilidade social ascensional de quem nada tinha em sujeito de identidade e pertencimento à condição de cidadania regulada pelo Estado moderno. Embora não alcançasse toda a classe trabalhadora, o simbolismo do emprego assalariado formal mobilizou o horizonte de expectativas de quem esperava ser incluído em algum momento futuro não distante.

Desde os anos de 1980, todavia, o capitalismo no Brasil passou a patinar. Com o ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal na década de 1990, o país tem rodado em falso, apontando inédita trajetória de decadência nacional.

Resultado disso tem sido a dissolução da relação salarial, especialmente da centralidade do emprego assalariado formal. Cada vez mais distante da população juvenil, a relação salarial tem sido continuamente atacada, perdendo vigor diante da força da terceirização, dos PJ’s, dos MEI’s, entre outras inciativas de imposição da nova relação débito crédito do precarizante empreendedorismo.

Em função disso, o terceiro módulo do trabalho se estabelece no Brasil. Com a Era Digital, o pagamento por peça, produto ou partes do processo mercantil tem arruinado a remuneração por tempo disponível do trabalhador ao patrão.

Com o aumento da população sobrante às necessidades da dinâmica capitalista de longa estagnação econômica, a força dos atuantes sindicatos tem sido minada. Na governança neoliberal, instalada nos anos de 1990, o sistema corporativo de relações do trabalho vigente desde a década de 1930 segue o rumo de sua destruição, submetido a relações laborais privadas, meramente comerciais.

Pela atual presença do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho enquanto consumidor de bens e serviços digitais, as possibilidades do trabalho decente são mínimas. Ao depender do modelo primário-exportador para viabilizar o pagamento das importações da Era Digital, o que sobra de trabalho encaixa-se crescentemente na relação débito crédito.

Ainda que o Estado em seu braço social possa promover importante profusão dos programas de transferência de renda, percebe-se a substituição do trabalho pela centralidade do dinheiro aos que não têm emprego com rendimento para viver. Ao retirar a centralidade do trabalho na vida, o amor ao dinheiro emerge decisivo, alimentando, em consequência, a individualidade a buscar se satisfazer pelo consumismo de bens e serviços, quando não por drogas legalizadas como antidepressivos, ou até drogas ilegais.

No seu braço policial, o Estado se incumbe do aprisionamento da população sobrante e empobrecida ou, ainda, do genocídio de recalcitrantes à relação débito crédito. Assim, a gestão da massa sobrante tem sido feita pelo Estado na tentativa de postergar a catástrofe que cada vez mais se avizinha.

No cenário que se vislumbra, a funcionalidade da emergência do novo sistema jagunço disputa, com força crescente, o domínio da imensa classe trabalhadora exposta à relação débito crédito. Seja pelo fanatismo religioso, seja pelo banditismo social – expresso por milícia fascista e crime organizado -, o futuro do terceiro módulo do trabalho está sendo redefinido.

Na relação débito crédito, o uso do trabalho serve, em geral, às atividades gerais, incapazes de gerar identidade e pertencimento. Tanto o trabalho realizado em casa (reprodução) como o efetuado fora de casa (produção) têm como finalidade a busca de um crédito monetário que permita minimamente equilibrar o custo monetário da reprodução da mão de obra.

Para isso, nota-se a difusão de atividades ilegais. Pela ponte de volta ao passado construída pelo modelo econômico primário-exportador e rentista, o que resta à classe trabalhadora atual tem sido o cancelamento do próprio futuro.

Artigo originalmente publicado no site Terapia Política

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