Querer ser livre é também querer livres os outros.
(Simone de Beauvoir)
No Brasil é possível dizer que no período pós redemocratização nunca houve tanta intensidade no debate sobre liberdades, genericamente consideradas, mas sobretudo liberdade de expressão, como na atualidade.
Acontecimentos no mundo fático propiciam longas altercações sobre direitos e limites, evidenciando que, para além da crise institucional e política, padecemos de ausência de aprofundamento do significado de valores e fundamentos da cultura democrática.
Com a ascensão do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, passamos a ouvir um discurso sobre a “liberdade” de ofender minorias, de criar e difundir mentiras em larga escala pelas redes sociais e aplicativos de mensagens. A “liberdade” de agredir e ameaçar autoridades e membros dos poderes da República e de insinuar golpes contra o regime democrático. A “liberdade” para ferir direitos de outros.
Em um contexto de pandemia de um vírus letal, conhecemos os defensores da “liberdade” de não se vacinar, de não usar máscaras, de não praticar isolamento social, de estimular aglomerações; a “liberdade” de contaminar pessoas.
Identificamos profissionais médicos – e seu conselho representativo maior – e a “liberdade” de prescrever remédios sabidamente ineficazes para pacientes, com ou sem seu aval ou conhecimento e, por fim, a “liberdade” de decidir quem viveria e quem morreria.
A liberdade transmutou-se, ao que tudo indica, em um conceito em que o núcleo de seu significado ficou totalmente comprometido, já que implica na negação do outro, individual ou coletivamente considerado. A antítese da aceitação, na definição da filósofa Simone de Beauvoir.
No nosso tempo presente, amesquinhado por convicções sem qualquer sustentação no mundo fático, a liberdade encontra espaço no plano meramente discursivo.
O esgarçamento de nosso tecido político-social nos conduziu a dificuldades elementares de suporte do debate público, de tal modo que a disputa pelo discurso encontra elementos disruptivos. Questões antes tidas por óbvias, não mais o são. Argumentos são usados para justificar o avesso do significado de princípios que os amparam.
No período mais recente, o caso do jogador de vôlei Maurício Souza, defensor militante de Jair Bolsonaro a ponto de usar o número 17 acoplado a seu nome nas redes, dividiu opiniões, inclusive no campo da esquerda. O jogador foi dispensado do Minas Tênis Clube, após pressão dos patrocinadores, por ter realizado postagem no Instagram em que questionava um beijo entre personagens do mesmo sexo em uma história em quadrinhos da DC Comics.
A defesa do atleta e dos que o seguem é de que ele tem o direito de expressar sua opinião e, portanto, sua repulsa à cena, bem como a ausência de estímulo a qualquer tipo de violência o isenta de ter cometido homofobia, o crime.
Será mesmo?
Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais passariam a ser enquadrados no crime de racismo.
A tipificação do crime prevê “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito em razão da orientação sexual da pessoa”. Se houver divulgação ampla de ato homofóbico em meios de comunicação, como publicação em rede social, a pena será de dois a cinco anos, além de multa.
A partir disso, creio que a primeira coisa a ser compreendida como homofobia é que ela se revela como quaisquer das formas de colocar outras pessoas, no caso os LGBTQIA+, na condição de inferioridade, de anormalidade, baseada no domínio da lógica heteronormativa.
Ou seja, a heterossexualidade vista como padrão, que vão desde “piadas” para ridicularizar, até o limite de violências e assassinatos ou, ainda, em uma visão patológica da homossexualidade, que submeta pessoas a olhares clínicos, terapias e tentativas de “cura”.
A segunda coisa é o potencial que a opinião de pessoas públicas exerce, que não pode jamais ser subestimada, inclusive como motor de ações violentas contra as minorias objetos do preconceito.
O jogador Maurício Souza não é um novato no debate, mas um habitué. Em outubro de 2017, ele escreveu na mesma rede social: “Sou do tempo que fumar era bonito e dar a bunda era feio! Hoje fumar é feio e dar a bunda é bonito! Sorte que sou velho. Graças a Deus”.
Agora, mesmo após o episódio da postagem criticada, o atleta divulgou imagem com o personagem das histórias em quadrinhos Superman, que a DC Comics revela como bissexual, em um beijo “hetero”, fazendo uma invocação de uma imposição do que seria “normal”.
Como uma hierarquização das sexualidades, conjurando a dimensão cultural que destaca a questão cognitiva, onde o objeto do preconceito é a homossexualidade como fenômeno, e não o homossexual enquanto indivíduo.
O discurso homofóbico é uma marca da extrema-direita e se ampliou muito com o bolsonarismo. Já o debate sobre a liberdade de praticá-lo parece ser mais amplo e, perigosamente, alcançar setores progressistas, com aparente dificuldade de enxergar o perigo de uma das mais perversas estratégias de opressão que rege o processo discriminatório entre os homens na contemporaneidade.
O potencial de violência embutida no preconceito é, na maioria das situações, dissimulada sob a guarida de vivermos em uma sociedade democrática, composta por cidadãos civilizados.
O preconceito, sobretudo explanado por alguém considerado ídolo dos esportes, com grande aceitação por parte da sociedade, com força de atuação e penetração, alimenta a rejeição e intolerância social dirigidas aos supostos portadores do mal, que “destroem famílias”, propagando-se no tecido social e atuando como uma das mais eficientes estratégias de controle e exclusão.
Por dura que possa parecer a reação à prática homofóbica de Maurício Souza que, como já dito, não é nenhuma novidade, deve funcionar como lição para conter a externalização da perversidade, mesmo que escamoteada por aparente “direito de opinião”. Que possa ser mote para a discussão reflexiva sobre as formas veladas de violência social.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato