O vetusto The Washington Post, que não pode ser classificado como de esquerda, muito menos petista, publicou na última sexta-feira, artigo de seu comentarista Howard Schneider que, como se repete há dez anos, foi ignorado pela chamada grande mídia brasileira por falar bem do Bolsa Família.
Pelo contrário. Alguns dos títulos das reportagens mais recentes do importante jornal norte-americano que foram reproduzidas foram os seguintes
Washington Post faz alerta a atletas que vêm ao Brasil (TV UOL, 25/11/2013)
Deu no “Washington Post”: o pré-sal não é bem assim (Ricardo Setti – blog da Veja, 14/01/2014)
‘Washington Post’: Dura realidade do petróleo no Brasil (Jornal do Brasil/Portal Terra, 7/1/2014)
Distante dos dois pesos, duas medidas aplicados, faz uma comparação entre os resultados do principal programa social brasileiro com os que alcançados pelos diversos programas sociais lançados pelo governo norte-americano para mitigar a crise econômica de 2008.
O título do artigo é um indicativo da conclusão do colunista do Washington Post: “Quer acabar com a pobreza? Resposta brasileira: dê dinheiro ao povo”.
O texto que se reproduz abaixo, de tradução livre, contém ainda outras definições que nenhum grande jornal brasileiro tem a isenção de publicar.
Qual a razão dessa diferença?
Simples: nos EUA, seja qual for a ideologia que guia as publicações e demais veículos de mídia, a predileção política do dono não inibe os jornalistas para a publicação da verdade tal e qual ela se apresenta. No Brasil, a independência dos jornalistas da grande mídia tem limite: os interesses das empresas que controlam os jornais. Interesses que nem sempre estão entre os mais nobres, como demonstra a história recente de apoio dessas publicações a inúmeros golpes contra a democracia no nosso País.
Como se verá nas linhas seguintes, um dos jornais mais influentes do mundo não apelou para uma das manipulações mais comuns na imprensa brasileira: omitir o que deu certo, o que é positivo, e ampliar o que é ruim ou não deu certo.
O texto publicado é o seguinte:
“Eis uma ideia brilhante para ajudar as pessoas pobres: dar dinheiro a elas. Especificamente, dar a elas dinheiro suficiente para acabar com sua pobreza.
Essa é a proposta da ministra do Desenvolvimento Social do Brasil, Tereza Campello, que esteve em Washington esta semana [a última semana de janeiro] discutindo a experiência do País em sua primeira década de vigência do badalado programa de transferência de renda Bolsa Família.
Essa é uma discussão relevante para os Estados Unidos, envolvendo um simples contrato social que entrega dinheiro vivo — sem maiores condições sobre como ele será gasto ou quem será considerado membro da família que recebe o benefício — desde que as crianças da família frequentem a escola.
Campello falou para executivos e funcionários do Banco Mundial — instituição que considera o Bolsa Família um modelo que poderá ser exportado para outros países em desenvolvimento — em um painel promovido pela Brookings Institution para analisar o desempenho dos programas sociais dos Estados Unidos durante este período de recessão. Tem havido uma enxurrada de pesquisas sobre o tema. Algumas conclusões são animadoras. Outras não.
Em geral, afirma Robert Moffitt, professor de economia da Universidade Johns Hopkins que avaliou os gastos sociais e os dados dos EUA sobre a renda durante os anos da crise econômica, programas como o que reduz o imposto a pagar de famílias de baixa renda, o seguro desemprego, ou ainda os cupons de alimentação e outras iniciativas que compõem a rede de seguridade americana. Todos mantiveram milhões de pessoas acima da linha de pobreza.
Um estudo do U.S. Council of Economic Advisers (Associação de Assessores Econômicos) estima que o impulso dos gastos norte-americanos com programas sociais detiveram o crescimento da pobreza em níveis mínimos, mesmo nos momentos em que o país atravessava o pior momento econômico dos últimos 100 anos.
Mas Moffitt também destacou que a atual configuração dos programas sociais americanos não permite tantos avanços quanto se espera. Os “pobres empregados”, que têm renda maior, tendem a se beneficiar mais do sistema de deduções de impostos, enquanto os que têm menor rendimento contam apenas com os programas tradicionais de benefícios sociais, que tendem a ficar mais retraídos. Ao mesmo tempo, gastos com cupons de alimentação tiveram sensível crescimento durante a recessão, ao contrário do que aconteceu com o TANF, sigla em inglês dos programas de assistência temporária para famílias sob risco social.
Cada programa tem sua própria lista de exigências. Os cupons de alimentação, por exemplo, determinam o que pode ser comprado com eles. Já o TANF condiciona a concessão do benefício ao trabalho, treinamento e número de filhos na família, dependendo do estado da União em que é aplicado.
Em resumo, afirma Moffitt, os programas parecem ter cumprido sua missão de ajudar as famílias durante a recessão.
Mas o impacto de longo prazo – a capacidade de retirar as pessoas da pobreza de maneira em caráter mais permanente – é outra história. Um estudo recente sobre mobilidade social nos Estados Unidos apurou que essa taxa tem estado inalterada por meio século, a despeito de toda a gama de programas destinados a ajudar os mais pobres a elevar seu padrão de vida.
Há, é claro, um acalorado debate sobre como os governos devem atuar nessa questão, e até mesmo se eles devem atuar.
Ainda é forte a preocupação de que essas ações possam desestimular o trabalho, tornando a pobreza “mais confortável”, conforme palavras de Michael Tanner, membro do Cato Institute.
Existem estudos que sugerem que esse efeito moral não é significativo. Mas, no contexto dos EUA, a política de combate à pobreza continua a evidenciar uma divisão ética, que, no nosso país, é historicamente nublada pela dinâmica racial e pelas mudanças demográficas, juntamente com discordância sobre os rumos da economia.
O Brasil enfrentava um panorama político semelhante quando, há mais de dez anos, começou o debate sobre a adoção de uma política mais ampla de combate à pobreza. Os pobres eram predominantemente negros, concentrados no Norte do país e privados do acesso à educação. Houve um forte clamor opondo-se à ideia, com o argumento de que o repasse puro e simples do repasse do dinheiro não passaria de pilhagem.
Mergulhado no cipoal moral de sempre, a resposta foi simples: esqueçam isso tudo.
Embora controversa, a decisão do governo brasileiro foi que cada família abaixo da linha da pobreza receberia dinheiro suficiente para superar essa condição. As transferências, que agora chegam a 14 milhões de famílias, ajudaram a reduzir a desigualdade de renda no País. Efetivamente, desde então, a renda das camadas mais pobres do Brasil cresce mais rápido do que a dos mais ricos.
Os valores pagos pelo programa são carregados em um cartão magnético uma vez por mês, entregue, na maioria dos casos, a mulheres responsáveis pela criação de pelo menos uma criança – um pouquinho de engenharia social que se constitui, hoje, em uma crença: elas administram melhor o dinheiro e cuidam melhor dos interesses das crianças.
Mas não há condicionantes sobre como esse dinheiro será gasto, assim como não há restrições na contagem do número de homens (maridos, filhos ou mesmo parentes) para estipular-se o valor a ser direcionado para as famílias que recebem o auxílio. Não há sequer a exigência para que os beneficiários busquem trabalho — embora, segundo Tereza Campello, a oferta de capacitação e treinamento seja crescente.
“A ideia é que a pobreza não é um conceito unidimensional”, explica a ministra. “Essas pessoas não são perdedoras. O que elas não tiveram foi oportunidade. Elas são pobres em muitos sentidos” – da baixa escolaridade, passando pela à falta de moradia e de acesso ao saneamento até as poucas opções de emprego. Num país tão grande com imensas carências de infraestrutura, resolver todos esses problemas é uma tarefa de longo prazo. “Para cada família, individualmente, a renda é o aspecto mais fácil de mudar. Comece com a renda e depois vá mudando as outras questões”, acrescenta a ministra.
A única exigência do Bolsa Família, na verdade, é que as crianças frequentem a escola – e as regras de frequência são mais rígidas do que as exigidas por lei das demais famílias.
Após uma década, o acompanhamento do programa mostra a queda da mortalidade infantil no universo das famílias beneficiadas pelo Bolsa e, o que é notável, crianças pobres estão tendo desempenho acima da média nacional no ensino secundário.
A pobreza no Brasil, é claro, tem uma magnitude diferente da que existe nos Estados Unidos. O Bolsa Família adota como critério a “linha de pobreza” das Metas do Milênio para o Desenvolvimento e definida pelo Banco Mundial de um mínimo de US$ 1,25 por dia por pessoa da família—valor que, em Washington, sequer paga uma passagem de metrô.
A história completa da experiência brasileira ainda está por ser contada. Os resultados, após uma década, parecem bons. Mas Tereza Campello lembra que o País está apenas começando a avaliar se as taxas de acesso à universidade das crianças das famílias beneficiadas pelo Bolsa Família serão maiores ou menores que a média nacional, ou como essas crianças chegarão até lá e qual será seu desempenho no mercado de trabalho.
Ainda faltam alguns anos para que essas questões sejam respondidas e dizer se o Bolsa Família está estimulando a mobilidade social – assegurando um mecanismo de ascensão autossustentável para as famílias beneficiadas — ou apenas fornecendo uma muleta permanente.
Mas a experiência pode trazer lições sobre incentivos e sobre os efeitos de se concentrar mais esforços na saúde e na educação das crianças de famílias pobres e menos na estrutura específica dos benefícios dados a adultos responsáveis pela criação dessas crianças. Vale a pena observar, mesmo daqui [dos Estados Unidos], diante da crescente percepção de que a trilha para a superação da pobreza esteja mais curta do que costumava ser.