Comportamentos como esse não apenas condenáveis – mas também causam desconforto e repulsa no meio jurídico. Isto porque uma das condutas mais caras à Justiça é a imparcialidade, especialmente quando nos referimos aos juízes que, por definição, devem se expressar nos autos.
Esse é o centro do artigo assinado pelo professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, que a Folha de S.Paulo reproduziu nesta terça-feira (03), tratando especificamente do caso do ministro Gilmar Mendes.
Personagem central de vários factoides, como da denunciada gravação de telefonemas seus com o ex-senador Demóstenes Torres (ex-DEM), cassado por quebra de decoro parlamentar. A suposta gravação serviu para revista Veja montar mais de uma de suas capas sensacionalistas, mas inverídicas.
Gilmar Mendes é o mesmo que retém a decisão do STF sobre a proibição do financiamento de campanhas por empresas há dez meses “para vistas”, embora o placar da votação – 6 a 1 – seja irreversível.
O dono da bola – Conrado Hübner Mendes – Folha de S.Paulo
O STF abriu nesta segunda-feira (2) o ano judiciário. O tribunal teve uma pauta conturbada em 2014 e a de 2015 não será diferente.
Na medida em que ganhou envergadura política na última década, muito se discutiu sobre o papel que o Supremo Tribunal Federal conquistou, seu volume oceânico de casos e a qualidade de suas decisões.
Um aspecto, porém, ainda pede maior cuidado crítico: o modo como alguns de seus ministros frequentam e manipulam, sem parcimônia, a mídia cotidiana. O ano de 2014 foi exemplar nessa superexposição pública e a conduta de um ministro, em particular, serve como bom ponto de partida para essa reflexão institucional.
Gilmar Mendes, como de costume, fez-se onipresente. O tiroteio retórico lhe encanta e dele participa com artilharia pesada. Seu vocabulário é recheado de clichês da hipérbole política. Jornalistas não mais o procuram por sua clarividência, mas, sim, por uma manchete.
Tanto faz se o assunto está para ser decidido pelo Supremo ou se nem chegou ao tribunal. Sente-se autorizado a mandar recados pela imprensa. Entende, pelo visto, que a Lei Orgânica da Magistratura a ele não se aplica. Princípios de circunspecção judicial, que buscam promover não só a imparcialidade mas também a imagem de imparcialidade, servem para os outros.
Por exemplo, quando provocado a opinar sobre a validade de uma constituinte para a reforma política, ponderou: “Não é razoável isso, ficar flertando com uma doutrina constitucional bolivariana”. E concluiu com ironia: “Felizmente não pediram que na Assembleia Constituinte se falasse espanhol”.
Instado a falar sobre o decreto de participação social do governo Dilma, voltou ao seu mais novo slogan de algibeira: “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz bem para a democracia”.
Nesse último processo eleitoral, como ministro do Tribunal Superior Eleitoral, após decisão que rejeitou candidatura de José Roberto Arruda com base na Lei da Ficha Limpa, da qual é opositor contumaz, afirmou, em ataque ao colegiado: “Quem tem responsabilidade institucional, justifica. Não faz de conta que hoje estava votando assim e hoje eu estava votando assado. Isso é brincadeira de menino”. E completou: “Quem faz jurisprudência ad hoc é tribunal nazista”.
Gilmar Mendes luta com as armas que tem e não gosta de perder. Quando perde, solta o verbo, e o seu verbo é calculado para polemizar. Pouco importa que afete a integridade do tribunal e de seus próprios colegas. A dúvida, matéria-prima para um bom juiz, não o atormenta.
Como numa “brincadeira de menino”, quer ser sempre o dono da bola. Uma cultura constitucional governada por donos da bola, contudo, corrói o projeto da Constituição de 1988 e o delicado capital político do STF. Sobreviver a ministros assim é hoje um dos maiores desafios do tribunal.
O jornalismo que cobre o Judiciário se deixa seduzir muito fácil pelas palavras do ministro. Poderíamos deixar de ouvir o Gilmar Mendes midiático e passar a ler o Gilmar Mendes juiz. Seus votos proporcionam descobertas mais interessantes para o bom debate e a boa crítica. Ali estão as polêmicas que precisam ser captadas pelo radar público e pelo jornalismo diligente.
A política está na temperatura ideal para os “mancheteiros” de plantão, veremos quais serão as próximas de Gilmar Mendes. Ignoremos a superfície e conversemos sobre o que vale a pena conversar, pela dignidade do direito constitucional.
* CONRADO HÜBNER MENDES é professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP
** Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo do dia 3 de fevereiro