O Brasil é, em muitos casos, o avesso de si mesmo. O tamanho das contradições encontra dificuldade de assentar lugar. Um povo alegre e cheio de virtudes que encanta estrangeiros, entoa a miscigenação como valor enquanto assassina seus jovens negros – todos “suspeitos” – nos territórios de favelas, devasta a floresta e queima a terra dos indígenas.
Bancadas de parlamentares construídas em nome de Deus pedem fogueiras ou prisões para todas as “bruxas” pecadoras, o fogo do inferno para vaginas livres. Bancadas edificadas em nome de produzir alimentos aprovam agrotóxicos que envenenam nossa comida.
Somos o país em que o passado nunca passou, que anistiou a tortura e elegeu o esquecimento como método. Por isso negar a ditadura, as torturas e mortes pelo Estado é tão fácil e simples. Porque o preço a pagar pela redemocratização do país foi a produção do silêncio, em aceitação de um pacto cuja função foi a de impedir que a verdade fosse conhecida.
Perdoou-se o imperdoável e essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Nesse caminho de uma população sem memória a democracia nunca foi apresentada às polícias, nem às Forças Armadas.
Naturalização da barbárie
Foi esse mesmo silêncio que gritou na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro no último dia 06 de maio, quanto 27 homens foram executados em uma operação policial, em repetição do que ocorre de tempos em tempos nesses territórios, em um processo de naturalização da barbárie no qual práticas violentas se ampliam.
No mês de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que as polícias fluminenses não realizassem operações em favela durante a pandemia, em ação movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em novembro de 2019, que pedia também para que o governo não realizasse ações com helicópteros como plataforma de tiro no estado.
A decisão do ministro Edson Fachin, motivada por repugnante sequência de “mortes por engano”, como do menino João Pedro, de apenas 14 anos, em São Gonçalo, alvejado com 70 tiros em maio de 2020, acarretou a queda da letalidade policial em 74% de maio, quando as polícias do Rio haviam matado 129 pessoas, para junho, 34 mortes. A redução, importante assinalar, não implicou aumento da criminalidade, mostrando a total ausência de relação.
Descontrole das polícias
O descontrole das polícias não é um fator da atualidade, tampouco sua violência, corrupção e ineficiência. Mas é fato que agora essas características se encontram com uma realidade política tensionada pelo ódio e com a garantia, oferecida pelo governo central, de que todo arbítrio se tornará paisagem, o que potencializa os riscos e envolvem a formação de uma base operacional para uma alternativa fascista propriamente dita.
No interior do Estado brasileiro, as polícias foram se constituindo como órgãos autônomos, que atuam com baixíssimos indicadores de transparência e que não estão submetidos a controle externo efetivo. Segundo a Constituição Federal, caberia ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, o que, na prática, não ocorre.
Os governadores não apenas não dirigem as polícias como em muitos casos, são reféns delas, como é o caso da Polícia Militar, com episódios de tensionamentos recentes em alguns estados, como foi o caso do motim no Ceará, não por coincidência governado pelo PT e não por acaso concentrado em Sobral, terra dos irmãos Gomes. O episódio ocorreu como expressão direta do bolsonarismo.
A chacina do Jacarezinho ocorreu no dia seguinte a uma reunião entre Jair Bolsonaro e o governador Cláudio Castro. Certamente apenas mais uma curiosa causalidade.
O fato é que um quadro de desordem, favorável ao avanço da criminalidade, como aquele de milicianos no Ceará, pode se espalhar pelo Brasil, assim como sucessivas operações policiais violentas, o que ofereceria à extrema-direita uma oportunidade para a aventura golpista já assumida por Jair Bolsonaro e sua demanda por “voto impresso”, sem o qual, segundo afirmou, não haverá eleições em 2022.
Disputa maior
Difundir o medo segue sendo um dos métodos mais eficazes para manipulação das pessoas. Quando se perde as referências, não se sabe mais no que acreditar. O desafio de nosso futuro próximo não se traduzirá no resultado de uma eleição, tenha ela o resultado que tiver, senão como etapa de uma disputa muito maior e mais profunda.
É preciso uma reflexão sobre a realidade brasileira em muitos pontos, dos quais as mortes de jovens negros nos territórios de favelas são apenas a ponta do iceberg. Não haverá espaço para neutralidade. Todos teremos que nos responsabilizar pelo horror do nosso tempo.
Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato