Brasil está à frente na articulação entre proteção social e apoio à produção agrícolaEm artigo escrito para o jornal italiano Corriere de La Sera, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o diretor geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), escrevem sobre a concretização de um sonho que, anos atrás, parecia inalcançável: sim, é possível construir um mundo sem fome.
Por um mundo sem fome e com paz
Um mundo sem fome não é um sonho abstrato. Um mundo sem fome, onde todos tenham oportunidade de se alimentar e estudar é algo possível, ao nosso alcance. A pobreza e a miséria, dentro dos nossos países ou em outros países, não é um fato inevitável da vida. Podemos, sim, construir um mundo sem fome. E só um mundo sem fome pode nos permitir construir um mundo sem guerras, um mundo de paz.
Embora não seja a única razão dos conflitos, há uma relação circular entre a segurança alimentar e a paz: do mesmo modo que a fome leva a conflitos, os conflitos agravam a fome.
Nossa convicção de que esse mundo é possível não se baseia apenas na esperança de um planeta mais justo. Ela se baseia nos avanços que diversos países têm feito no combate à fome e na experiência de nossas vidas lutando para melhorar as condições sociais no Brasil.
Dentro de poucos dias, vamos adicionar nossos nomes à Carta de Milão, na Reunião de Ministros da Agricultura que terá lugar nos dias 4 e 5 de junho, durante a Expo Milão 2015.
A Carta de Milão é o documento que traz o legado da Expo Milão 2015. O texto aborda várias questões cruciais, tais como: o escândalo do desperdício de alimentos, a necessidade de assegurarmos comida em quantidade suficiente para uma população mundial em crescimento, preservando o meio ambiente, e o papel crucial das mulheres no desenvolvimento.
O documento também oferece uma oportunidade para que o mundo se envolva em uma discussão sobre o futuro da agenda de desenvolvimento global .
As últimas décadas trouxeram inegável progresso na luta contra a fome. O número de pessoas que passam fome caiu em 200 milhões desde 1990, e a proporção da desnutrição caiu mais de 40% no mundo em desenvolvimento.
Mas ainda há muito a ser feito. De acordo com os últimos dados divulgados pela FAO, na semana passada, pouco menos de 800 milhões de pessoas?—?ou 1 de 9 pessoas em todo o planeta?—?ainda sofrem com a fome.
O Brasil e outros países, na África e na América Latina, como por exemplo a Bolívia, a Argentina, o Senegal e Moçambique, estão construindo relações dinâmicas entre proteção social e apoio à produção agrícola. Há diversos exemplos dos benefícios desta combinação, entre os programas de alimentação escolar?—?que garantem a compra de produtos dos agricultores locais?—?e os programas de transferências de renda, como o brasileiro Bolsa Família?—?que garante uma renda mínima para famílias que mantêm seus filhos na escola e com acompanhamento médico periódico.
De um lado, apoio aos produtores de alimentos e garantia de refeição nas escolas. Do outro, apoio financeiro para que a família supra suas necessidades básicas e mantenha as crianças estudando. O objetivo é dar aos mais jovens oportunidades que seus pais jamais tiveram, quebrando o ciclo da miséria que passa de geração para geração.
Tal abordagem integrada ajuda a explicar o sucesso do Programa Fome Zero e por que ele foi utilizado como inspiração para uma série de programas de segurança alimentar em níveis nacional e regional, em todo o planeta.
Embora o trabalho das Organizações Não-Governamentais seja muito importante, o compromisso político dos países?—?dos governos e das sociedades?—?e o apoio técnico e financeiro de instituições multilaterais são insubstituíveis para a inclusão social. É fundamental o compromisso político dos governos de combater a miséria e de incluir os mais pobres nos orçamentos nacionais.
Quando isso acontece, os resultados surgem rápido. Quando o combate à fome tornou-se a prioridade do governo brasileiro, em 2003, o progresso foi acelerado. Entre 2002 e 2007, a proporção da desnutrição caiu de 11% para menos de 5% no Brasil. Em outubro de 2014, o Brasil saiu do mapa da fome. Assim, o país pôde assumir a meta ainda mais ambiciosa de erradicar a pobreza extrema.
Esse mesmo compromisso político é cada vez mais presente no mundo. Na Conferência de chefes de estado e governo da União Africana em 2014, as nações daquele continente estabeleceram o objetivo de erradicar a fome e a desnutrição até 2025. O Instituto Lula e a FAO são parceiros ativos para tornar este compromisso ousado uma realidade.
A principal responsabilidade por garantir o direito à alimentação adequada cabe aos governos nacionais, mas todos nós devemos assumir uma parcela dessa missão.
Não existe uma única solução para todos os casos. Os países podem?—?e devem?—?aprender uns com os outros, e adaptar os exemplos, encontrando o seu próprio caminho.
O combate à fome e à miséria beneficia toda à sociedade. O dinheiro da transferência de renda aos mais pobres não vai para a especulação. Transforma-se em comida, roupas, material escolar. Movimenta o comércio local, a indústria, gera empregos.
Os pobres não podem ser vistos como um problema. Os problemas são a desigualdade do mundo, a fome, os conflitos militares. Quando se dá oportunidades para as pessoas, elas são parte da solução.
O mundo tem os recursos, os alimentos e certamente todos temos dentro de nós a solidariedade necessária para lutarmos e erradicarmos a fome no planeta.
Só teremos um mundo justo e equilibrado quando todos tiverem a oportunidade de se alimentar e viver em paz. E queremos afirmar mais uma vez: sim, isso é possível.
(Artigo originalmente publicado, em italiano, no jornal italiano Corriere della Sera)
Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil (2003–2010)
José Graziano da Silva é Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)