Havia um tempo em que grandes abalos políticos eram consequência de grandes e bem apuradas matérias. Entrevistas com fontes que tinham nome e rosto, como a que culminou no impeachment de Fernando Collor de Mello. Hoje, basta uma entrevista com um anônimo, em off (entrevista em off?) para mexer com a opinião pública. Não deveria ser assim.
Isso é o que defende a jornalista Maria Cristina Fernandes, em sua coluna publicada na edição desta sexta-feira (21/09) do Jornal Valor Econômico. “Se os juízes, pelas indicações do relator no capítulo político do julgamento condenarem por indícios, por que um jornalista precisaria de fonte para publicar uma acusação?”, indaga a jornalista sobre o abuso, pela mídia, de informações vindas de fontes que não se sabem de onde vêm ou que credibilidade possuem.
Fernandes pergunta em seu artigo para que fim se prestaria a “acusação anônima na reta final de uma campanha eleitoral definidora dos exércitos de 2014”. Ela avalia que para reverter o que classifica como “a má-fama angariada”, a imprensa terá que se dedicar com igual afinco ao julgamento da montanha de casos de corrupção que se acumulam nos tribunais.
Leia a íntegra da coluna:
Manter a jurisprudência sem os holofotes – Por Maria Cristina Fernandes
O impeachment de Collor nasceu da entrevista do irmão. O mensalão, daquela entrevista de Roberto Jefferson. A acusação de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o chefe da quadrilha do mensalão não tem autoria.
O publicitário Marcos Valério, identificado como autor da acusação, não a assumiu. E seu advogado nega que tenha falado.
O áudio da entrevista pode existir, mas o fato de a revista de maior circulação do país ter publicado capa com uma acusação dessa gravidade sem autoria mostra que o julgamento ora em curso no Supremo tem consequências que extrapolam a dosimetria das penas.
Se os juízes, pelas indicações do relator no capítulo político do julgamento condenarem por indícios, por que um jornalista precisaria de fonte para publicar uma acusação?
Não é de hoje que se abusa do off, recurso legítimo do jornalismo que protege fontes com informações valiosas em nome do interesse público.
Mas na acusação em curso, paira no ar a dúvida sobre a que público serve a acusação anônima na reta final de uma campanha eleitoral definidora dos exércitos de 2014.
Essa relação nebulosa entre noticiário e interesse público não passa despercebida de quem está na arquibancada.
Repousa esquecida em cruzamentos de uma pesquisa Datafolha (10/08) a avaliação sobre a cobertura do mensalão: 46% dizem que a imprensa tem sido parcial – e 39% a julgam imparcial.
Não dá para atribuir o dado às massas ignaras do lulismo. Quanto maior a escolaridade, maior a percepção. Dos entrevistados que passaram pela universidade, 53% julgam a imprensa parcial. Entre aqueles que têm apenas o ensino fundamental, 41% compartilham a impressão.
Não parece haver dúvidas de que o julgamento tem inovado na interpretação da lei. Mas para aquilatar seu real impacto sobre o combate à corrupção resta saber se a jurisprudência será seguida à risca quando os holofotes se apagarem.
Para reverter a má-fama angariada, a imprensa terá que se dedicar com igual afinco ao julgamento da montanha de casos de corrupção que se acumulam nos tribunais.
Foi graças aos jornalistas que se conheceram os grandes escândalos de corrupção no governo Fernando Henrique Cardoso – Sivam, grampos do BNDES na privatização da Telebras, caso Marka/FonteCindam e, o maior deles, a aprovação da emenda da reeleição.
Ministros foram defenestrados e contratos foram cancelados, mas o entendimento era outro sobre a persecução penal dos envolvidos. Do desdobramento desses casos não se colhe o mais leve indício de que a tese do domínio do fato pudesse um dia vir a evoluir para a interpretação que ganha terreno no Supremo e facilita a condenação de quem está no topo de hierarquias de poder.
A imprensa também será desafiada a manter o arrojo com que se empenha na atual cobertura quando a aplicação dessa jurisprudência se voltar para o setor privado, muito menos aberto à investigação jornalística que o público.
O segundo capítulo do julgamento, que condenou os banqueiros, impôs um padrão de austeridade inédito, por exemplo, na gestão do risco bancário. Para punir um dirigente de empresa não será preciso provar delito maior que a omissão no cumprimento do dever.
Uma coisa é enquadrar o banco Rural, que já havia se tornado um pária no mercado desde o envolvimento em intermediações financeiras com o governo a partir da era Collor.
Outra coisa é aplicar a nova jurisprudência a grandes empresas e bancos. A sanha punitiva – e jornalística – resistirá ao argumento, para além da coerção verbal, de que o mercado, engessado, é um freio ao desenvolvimento econômico?
O que dizer, também, da ameaça de reversão das reformas aprovadas com os votos que o ministro relator assevera terem sido comprados? Bárbara Pombo conta hoje no Valor (pág. E1) que advogados já se movimentam nesse sentido.
Se a oposição conseguir voltar ao poder, o presidente que eleger pode se ver na contingência de defender a constitucionalidade das reformas tributária e previdenciária que seu partido acusou, com o possível beneplácito do Judiciário, de terem sido compradas.
Na hipótese ainda improvável de a mudança na jurisprudência trazer ameaça real ao estabelecido, a reforma do Código Penal sempre pode ser uma saída para fechar a porteira aberta por este julgamento.
O anteprojeto de reforma do código, gestado no gabinete do presidente do Senado, José Sarney, precede o julgamento do mensalão e não se remete aos seus resultados. Mas nada impede que, uma vez iniciada sua tramitação, o texto possa ser abrigo das pressões que devolveriam o país ao seu curso natural de leniência com a corrupção dos donos do poder. E sem exceções.
Ainda não se sabe se o mensalão é a causa para a queda do candidato do PT, Fernando Haddad, nas pesquisas, mas, a julgar pelo Datafolha, a exploração do caso ainda não parece ter surtido os efeitos esperados sobre o PT em São Paulo. Questionados como veriam um próximo prefeito do PRB, do PSDB ou do PT, os entrevistados disseram o seguinte: 15% achariam “ótimo ou bom” se o eleito fosse do PRB; 25% disseram o mesmo de um tucano no poder; e 33% de um petista.
*Coluna publicada no jornal Valor Econômico