18/09/2011
Mac Margolis, Newsweek
Uma mulher preside o florescente e macho Brasil. E ela está dando todas as cartas.
Entre as muitas histórias de guerra contadas por Dilma Vana Rousseff sobre sua trajetória de dirigente revolucionária a presidente do Brasil, uma, em especial, chama a atenção. Aconteceu no início da campanha de sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva, e a maioria dos brasileiros estava começando a se acostumar à idéia de viver sem seu hiperpopular líder, o “pai dos pobres”. Um dia, num aeroporto lotado, uma senhora e sua filha se aproximaram de Rousseff para ver de perto a mulher que seguia à frente nas pesquisas. “Uma mulher pode ser presidente?”, perguntou a garota, — cujo nome, apropriadamente, era Vitória. “Pode,” respondeu Rousseff. Vitória então agradeceu, levantou o queixo e afastou-se, alguns centímetros mais alta. Rousseff sorri ao rememorar o episódio, durante a entrevista à Newsweek, no Palácio do Planalto, em Brasília. Eram quase 18 horas e o feroz sol sobre o Planalto Central já declinava, mas o dia da presidente estava longe de acabar.
Temporais no Sul do País haviam deixado milhares de desabrigados. Trabalhadores das obras da Copa de 2014 faziam paralisações. A imprensa ainda se deliciava com a carcaça dos escândalos de corrupção, um chacoalhão ministerial que havia custado à presidente cinco ministros em menos de nove meses de governo.
E mesmo assim, Rousseff, num blazer fúcsia, calça preta e enormes brincos de pérola, parecia relaxada ao falar do Brasil, do mundo, da economia, da pobreza e da corrupção. O cabelo volumoso e brilhante realçava as faces coradas, sem marcas das debilitantes sessões de quimioterapia a que foi submetida no tratamento de um linfoma, descoberto em 2009. Por quase uma hora, ela disparou dados e números, saltando entre temas como criação de empregos (“Geramos 1,593,527 nos primeiros seis meses”) a T. S. Eliot (“Ash Wednesday”- “Quarta-feira de Cinzas”- é um dos favoritos) a como as mulheres podem reescrever as regras da participação política.
“Quando eu era criança, queria ser bailarina ou bombeira. Ponto final”, contou. “Não sei se esse é um novo mundo, mas o mundo está mudando. Quando as meninas começam a perguntar sobre a possibilidade de ser presidentes, isso é um sinal de progresso”. Para os que ainda têm dúvida, a Assembleia Geral da ONU, que começa esta semana em Nova York, é um retrato de uma nova ordem mundial. A secretária de Estado americana, Hillary Clinton, estará lá, assim como Angela Merkel, a chanceler alemã, cujas palavras poderão, em última instância, abalar a União Européia. Mais importante, talvez, para as 20 mulheres atualmente chefes de estado (12 delas deverão estar presentes à Assembléia, como Cristina Kirchner, da Argentina, Laura Chinchilla, da Costa Rica, e Kamla Persad-Bissessar, de Trinidad e Tobago) é que, no dia 21 de setembro, quando Rousseff subir à tribuna, ela será a primeira mulher a fazer o discurso inaugural nesse mar de ternos, desde a criação da ONU.
Rousseff está na crista da mesma onda em que se encontra o Brasil. De vento em popa, o país supera o desempenho medíocre do passado. Em 2010, a economia cresceu cerca de 7,5%, o dobro da media mundial e vai alcançar respeitáveis de 3% a 3,5% neste difícil 2011. Isso significa que, enquanto as nações mais ricas penam para evitar a recessão, o Brasil tenta controlar seu crescimento econômico. A moeda está estável, seu sistema judiciário — ainda que com falhas — funciona e sua imprensa está entre as mais fustigadoras do hemisfério.
Com as nações mais ricas estagnadas e o mundo árabe em convulsão, essa florescente nação democrática expande suas fronteiras para além do hemisfério. Na semana passada, o Brasil até cogitou a idéia de participar ao socorro financeiro aos países da zona do Euro. “Precisamos estudar uma maneira das nações emergentes com mais cacife ajudarem a Europa”, afirmou o ministro da Fazenda de Rousseff, Guido Mantega, que vai se reunir com seus colegas do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) durante o encontro anual do Banco Mundial, esta semana em Washington. “Em 2008, ajudamos a elevar a capacidade de financiamento do FMI de US$ 250 bilhões para R$ 1 trilhão. Podemos fazer algo similar agora”. Ninguém espera realmente que o Brasil salve a Grécia. (A Agência Reuters classificou a oferta de Mantega como “manobra vazia” destinada a “elevar o status internacional do Brasil a baixo custo”). Mas quem imaginaria uma iniciativa dessas de um país que, há 15 anos, era um elo frágil da ordem econômica mundial? “Vocês foram chamados de país do futuro por muito tempo”, lembrou Barack Obama à platéia lotada do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no último mês de março. “O povo do Brasil deve saber que o futuro chegou”.
A jornada foi longa. Quando Rousseff assumiu, em janeiro, aos 63 anos de idade, ninguém sabia o que esperar. Ela era uma neófita em política, mais conhecida por seu passado como guerrilheira marxista, na época da ditadura, e, posteriormente como uma burocrata. Jamais havia concorrido a uma eleição, até que Lula a convocou como sucessora. Como ela iria seguir os passos do “mais popular dos políticos sobre a face da terra” — como Lula foi descrito por Obama, na famosa tirada de lisonja —, o homem cuja trajetória de operário a presidente é matéria de lenda?
Impedido por lei de buscar um terceiro mandato consecutivo — ele teria ganho facilmente — Lula não só catapultou a campanha de Rousseff, como, no fundo, inventou-a como candidata, como um Pigmaleão dos trópicos. Enquanto ele é puro carisma e mal-lapidado populismo, ela era uma mastigadora de números, mais à vontade exibindo powerpoints que lidando com assuntos de Estado. Conseguiria a caloura virar mágica e completar a tarefa de guiar o gigante latino-americano no longamente acalentado rumo de tornar-se uma potência mundial? Ou iria ser apenas o Dmitry Medvedev de Lula, esquentando o lugar para o retorno do presidente, quatro anos depois? Nosso veredito: mal transcorridos nove meses de gestão, Rousseff já carimbou sua marca no país que Lula tinha nas mãos. “Ela é uma administradora experiente, que gosta de eficiência. Trabalhar é seu hobby”, diz o bilionário de energia e mineração Eike Batista.
Outro magnata brasileiro, Nizan Guanaes, concorda. “Ela não está brincando de política ou se autopromovendo. O país tem a sensação de que tem comando”, afirma Guanaes, presidente do grupo ABC, maior empresa de marketing do país. “O Brasil já foi dirigido por um prestigiado professor, por um líder sindical e agora por uma mulher, um extraordinário sinal de maturidade. Nosso ‘homem do ano’ é uma mulher”.
Nem todos estão tão entusiasmados. O especialista em energia Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura, a critica como centralizadora. Quando seu poderoso chefe da Casa Civil foi acusado de ter recebido uma fortuna de clientes do governo durante a campanha eleitoral, adversários de Rousseff a acusaram de ter prejudicado sua credibilidade na demora para demitir o ministro. Desde então, ela modificou seu estilo de controle de danos, calando os críticos com demissões rápidas de três outros ministros envolvidos em escândalos de corrupção.
Duas vezes divorciada e avó, Rousseff mantém o controle sobre sua vida pessoal. Mora com a mãe, também chamada Dilma (“A Dilma original, brinca a mãe), uma tia e um cão labrador negro, no Palácio da Alvorada, a residência oficial. Acorda cedo para caminhar no jardim, devora uma seleção de notícias em seu iPad e já está no escritório às 9:15h, onde permanece até as 21h. Mantém contato próximo com o ex-marido Carlos Araújo, que voou para Brasília quando ela foi diagnosticada de câncer. Embora ela proteja sua família do olhar do público, embalou o neto de um ano de idade enquanto presidia o desfile do Sete de Setembro.
No trabalho, ela é racional, até taciturna, e tem um famoso pavio curto. Não tolera inconsequentes ou incompetentes, conta um graduado assessor, e há muitas histórias sobre burocratas reduzidos ao silêncio ou às lágrimas após levar uma descompostura presidencial. O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, que conhece Rousseff desde os tempos de guerrilheira, resume a Dama de Ferro: “Dilma costuma dizer que ela é uma mulher durona cercada de homens doces e cordiais”. “Às vezes, é preciso ser incisivo para ter sucesso com ela.” João Santana, o marqueteiro que dirigiu a campanha da presidente, vai além. “Dilma é a nova cara do Brasil: segura de si, pouco ansiosa para agradar, generosa, mas não subserviente. Ela conhece seu valor”.
Essa determinação a serviu bem em Brasília. A instável coligação de dez partidos, liderada pelo poderoso Partido dos Trabalhadores, que a colocou no poder (e que poderia ter derrubado um político menor) está em grande medida sob controle, com suas demandas por benesses tratadas com firme resistência. A presidente transformou escândalos de corrupção em vitórias políticas, usando-os como oportunidade para afastar os envolvidos que lhes foram impostos. Para seus lugares, nomeou parceiros e colegas de longa data, principalmente mulheres, incluindo a chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, e a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti.
As mulheres formam uma trinca no gabinete da presidente, um matriarcado no coração da “Brasília macho,” cuja pedra de toque é a lealdade a Rousseff, não aos figurões do partido. Até Lula, difícil de ofuscar, parece eclipsado. “Quatro anos não são suficientes para quem vai governar por oito anos”, disse ele, recentemente. Dilma, a “presidente-tampão”, tornou-se a “política alpha” do Brasil. “É Pigmalião pelo avesso”, diz o analista político Amaury de Souza. “A criatura está devorando o criador.”O exagero não é grande. Embora Rousseff dificilmente perca a chance de louvar seu padrinho polÍtico, ela jamais foi politicamente inocente, como seus rivais tentam pintá-la. Pergunte a José Serra. Há um ano, o ex-governador de São Paulo e principal auxiliar do presidente Fernando Henrique Cardoso — o social-democrata cacifado por salvar o Brasil da hiperinflação, nos Anos 90 — era aposta certa para suceder Lula. Ele tratava a novata Rousseff como “a embalagem vazia”. Ela o surrou na eleição por uma diferença de 12 pontos percentuais, alcançando 56% dos votos, contra os 44% de Serra.
A carreira política da presidente começou numa erupção de protestos radicais. Rousseff era uma estudante secundarista em Belo Horizonte quando os militares impuseram uma ditadura, em 1964, que iria durar 21 anos. Como muitos jovens brilhantes e privilegiados de seu tempo, ela estava revoltada. Aderiu ao movimento estudantil e, quando este foi posto na ilegalidade, ingressou na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), um grupo de ultra-esquerda engajado na derrubada do regime.
Rousseff diz que nunca usou armas (embora fosse boa em limpá-las) porque era míope demais para atirar. Mas ela ajudou a traçar a estratégia do grupo, que praticou uma série de audaciosos assaltos a banco. Foi presa em 1970, durante o momento político mais tenebroso da época. Em São Paulo, seus captores lhe aplicaram choques elétricos, espancamentos e — um hit brasileiro — a penduraram de cabeça para baixo numa barra conhecida como “pau-de-arara”. Ela sofreu, mas, tudo indica, jamais cedeu, dando falsas informações a seus algozes. Dos cárceres da tortura ela foi transferida para o Presídio Tiradentes, em São Paulo, ironicamente batizado com o nome do herói da Independência do Brasil. Quando foi libertada, três anos depois, tinha perdido onze quilos e sua glândula tireóide estava destruída. Tinha 25 anos.
Militantes como a jovem Rousseff iriam se tornar a nova geração política das nascentes democracias latino-americanas. Eles também queriam o poder. E embora muitos tenham mantido sua a ligação com a ideologia de esquerda, o realismo prevaleceu. Lula disputou a presidência três vezes como um agitador político e perdeu todas. Finalmente, aparou a barba, vestiu o terno e aproximou-se dos investidores e da classe média. Assim, venceu.
Formada em Economia, Rousseff aperfeiçoou sua capacidade de liderança na cadeia, em debates com outros presos e devorando os poucos livros permitidos pelos censores. “Você acredita que eles liberaram A Questão Agrária, de Karl Kautsky?”, diz ela, citando um clássico marxista. A disciplina lhe foi útil quando se mudou para Porto Alegre como organizadora política. Lá, seu talento para números e capacidade de persuadir “companheiros” atraiu a atenção do prefeito da cidade. Ela estreou na administração pública, escalando de secretária municipal de Finanças para secretária estadual de Energia e, depois, Comunicações, ganhando a reputação de coordenadora firme, de cujo laptop saltavam os números que silenciavam os oponentes. Lula ficou tão impressionado que a ungiu—uma recém-chegada ao partido—para ministra das Minas e Energia, no momento em que o Brasil anunciava a descoberta de uma gigantesca reserva de petróleo no mar. Apesar da sua reputação de nacionalista, na economia, investidores estrangeiros fizeram fila à sua porta. “Ela era pragmática, muito direta, embora nem sempre fácil”, diz a vice-presidente da PepsiCo, Donna Hrinak, ex-embaixadora dos Estados unidos no Brasil. “As empresas norte-americanas gostavam de lidar com ela, que fazia um esforço sincero para entender suas questões. Era perceptível que suas decisões eram baseadas em sólidos critérios técnicos e econômicos”.
Quando um escândalo de subornos sacudiu o governo Lula, em 2005, derrubando o principal auxiliar do presidente, ele fez de Dilma Rousseff sua chefe da Casa Civil — posição a partir da qual ela praticamente dirigiu o país, enquanto Lula intensificava sua diplomacia hiperativa na missão de marcar o Brasil como uma força no cenário mundial. Rousseff já era, então, sua visível herdeira. A unção de Lula pode ter ajudado na eleição de Rousseff, mas governar a mais indisciplinada democracia latino-americana exige mais que um padrinho poderoso. Lula foi bem sucedido, combinando conservadorismo econômico com gastos sociais agressivos. Ele também teve a ajuda do boom dos preços internacionais das commodities e da maré de liquidez do mercado internacional, em busca de bons negócios e portos seguros. Esse colchão aliviou o impacto da crise econômica mundial de 2008. Rousseff manteve-se fiel a essas políticas e sabe que a desaceleração da economia mundial estreita sua margem de manobra.
“Sabemos que não somos uma ilha,” diz ela. “Leio nos jornais todos os dias: a Grécia não consegue pagar seus empréstimos, a Espanha tem problemas, a Itália também. Os Estados Unidos não estão crescendo. Isso tem impacto negativo no resto do mundo”. E ela faz uma breve pausa de efeito. “Sabe qual a diferença do Brasil para o resto do mundo?”, pergunta. “Nós temos todos os instrumentos de controle intactos para combater o baixo crescimento ou mesmo a estagnação de nossa economia”. Graças à postura cautelosa no crédito e ao rígido controle do Baco Central “ainda podemos reduzir nossa taxa de juros, ao contrário de outros países, onde as taxas já estão próximas de zero”. Ela anima-se, apontando os pontos que transformaram o Brasil entorpecido em rolo compressor da América Latina. “Somos uma grande economia, rica em recursos naturais e com um imenso mercado interno. Graças às nossas políticas sociais, 40 milhões de pessoas subiram da pobreza para a classe média, desde 2003. Isso equivale a uma Argentina. A demanda interna foi reprimida por tanto tempo que agora temos um imenso potencial de crescimento. Temos uma explosão imobiliária, sem bolha. O mercado interno propiciará a aceleração do crescimento”.
Ninguém espera de Rousseff uma revolução política. São necessários três quintos dos votos das duas casas do Congresso brasileiro para reformar o deficitário sistema previdenciário ou instituir uma nova configuração tributária. “Mas há muito que ela pode fazer trabalhando pelas beiradas,” diz o cientista político da Universidade de São Paulo, Matthew Taylor. Trazer a hipertrofiada máquina pública para o século 21 poderia ser um começo. Há anos, ela vem dizendo que “o Estado foi tão inchado, em alguns setores, e tão abandonado em outros”. E que “precisamos responder às demandas de um país em crescimento, profissionalizando o serviço público, promovendo as pessoas com base no mérito. Nenhum país que atingiu um nível elevado de desenvolvimento conseguiu isso sem reformar a administração pública”.
Rousseff promete poucas alegrias para o lobby dos gastadores. “A Constituição de 1988 prometeu Saúde pública, gratuita, universal e de qualidade”, diz. “Em nenhum lugar do mundo se consegue isso sem dinheiro”. E aos políticos acostumados a abocanhar recursos públicos e deixar a conta para os contribuintes, ela recentemente mandou uma mensagem curta e grossa: “Não preciso de presentes de grego”. Delfim Netto, ex-czar da economia no regime militar, está impressionado. “Dilma tem os olhos no Brasil, mas, ao mesmo tempo, ela sabe como não violar os princípios da contabilidade internacional.”
Livros de balanço podem não ser artigo de confiança no Brasil, Rousseff diz que isso levará ainda algum tempo. Essa é uma lição que ela aprendeu anos atrás, quando seu endereço não eram os palácios de mármore do Planalto, mas a cela de São Paulo. “Na cadeia, você aprende a sobreviver, mas também que você não pode resolver seus problemas do dia para a noite. Espera-se muito na prisão. A espera significa necessariamente esperança, mas se você a perde o que domina é o medo. Eu aprendi a esperar”.