Seu nome de guerra era Estela. Integrante de um grupo clandestino de guerrilha quando foi capturada, em 1970, passou três anos presa, período no qual seus interrogadores a torturaram seguidamente com choques elétricos nos pés e orelhas e a submeteram ao “pau de arara”, instrumento no qual as vítimas são penduradas de cabeça para baixo, nuas e amarradas pelos pulsos e tornozelos.
Essa ex-guerrilheira é agora a presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Enquanto uma Comissão da Verdade começa a investigar a repressão militar durante os vinte anos de ditadura, os brasileiros são confrontados por detalhes escabrosos que emergem do passo de seu País e de sua presidenta.
As fraturas de uma era, que se estendeu de
Grupos de Direitos Humanos, enquanto isso, fecham o cerco sobre Lopes Lima e outros acusados de tortura, sitiando suas residências por todo o Brasil. “Um torturador da ditadura mora aqui”, escreveram em tinta vermelha na entrada do edifício onde vive Lopes Lima, na cidade balneária do Guarujá (SP), como parte de um esquete de teatro de protesto.
Ainda que os militares estejam escudados pela Anistia de 1979, que os livra de serem processados por tortura, a Comissão da Verdade, que começou a trabalhar em maio deste ano e tem mandato de dois anos, está desenterrando fantasmas. A ditadura matou cerca de 400 pessoas. Acredita-se que milhares de brasileiros tenham sido vítimas de tortura.
A violência infligida a Dilma, que tinha 22 anos quando começou a ser torturada e hoje tem 64, está entre os casos mais proeminentes entre as centenas que a comissão examina. A presidenta brasileira não é a única líder da região a chegar ao poder depois de ter sido presa e torturada, um sintoma do tumultuado passado político da América Latina.
Rara abordagem do tema
Quando jovem estudante de Medicina, a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, sobreviveu ao doloroso período de encarceramento e tortura, após o golpe militar de 1973, em seu país. O uruguaio José Mujica, ex-líder da organização guerrilheira Tupamaros, foi submetido à tortura por quase quinze anos, período em que esteve preso.
Desde que tomou posse, Dilma tem se recusado a assumir o papel de vítima, ao mesmo tempo em que trabalha de maneira discreta para que sejam desvendados os fatos relativos à ditadura militar. Ela raramente aborda em público as crueldades que sofreu e, à exceção das solenidades em torno do tema, pouco falou sobre o assunto à própria Comissão da Verdade. Por uma assessora, ela informou que não daria entrevista sobre os trabalhos da comissão ou sobre o tempo que passou na prisão.
Dilma cresceu consideravelmente desde seus dias na resistência clandestina à ditadura, quando usava diversos codinomes, numa trajetória similar a muitos dos esquerdistas alçados à elite política brasileira. Filha de um negociante búlgaro emigrado e de uma professora, cresceu em condições de relativa prosperidade. Ela viria a abandonar esse conforto para aderir ao recém fundado grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária Palmares.
Depois de libertada da prisão, ela mudou-se para Porto Alegre, quando seu então marido, Carlos Franklin Paixão de Araújo, ainda cumpria pena por subversão. Ela retomou os estudos de economia, teve a filha Paula, em 1976, e passou a militar na política local. Moderando suas posições, ela despontou aos poucos para a cena política nacional como uma tecnocrata focada em resultados. Foi chefe da Casa Civil e ministra de Minas e Energia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a escolheu para concorrer a sua sucessão, na eleição de 2010.
Seu estilo de governo tem claras diferenças com o de seu antecessor, um agregador ex-líder sindical. Mesmo diante da desaceleração da economia do País, as taxas de aprovação de Dilma chegam aos 77%, na esteira da expansão das políticas governamentais de combate à pobreza e aos projetos de estímulo ao crescimento. A presidenta é aclamada por parte da oposição por reconhecer as conquistas econômicas de Fernando Henrique Cardoso, presidente entre
Ela leva uma vida discreta em Brasília. Mora no Palácio da Alvorada, residência oficial de arquitetura modernista, com a mãe e uma tia (ela é divorciada de Araújo, com quem mantém uma relação próxima). Segundo a imprensa, seus interesses vão da pintura surrealista de René Magritte à série Game of Thrones, exibida na TV por assinatura.
“Eu me lembro que minha pele tremia”
Ao mesmo tempo, seu modo exigente de governar — diz-se que ela já fez mais de um colaborador graduado chorar com o tom de suas repreensões — vem sendo entronizado na cultura popular. O comediante Gustavo Mendes ganha notoriedade imitando a presidenta no vulgar “Casseta e Planeta Vai Fundo”, humorístico televisivo de veiculação nacional.
Tal escárnio a um governante exibido em rede nacional de TV seria quase inimaginável no tempo em que Dilma esteve presa, quando os brasileiros sofriam censura a prisão ou coisas piores por criticar seus dirigentes. A experiência da presidenta nas câmaras de tortura da ditadura permaneceram desconhecidas do público por décadas. Alguns detalhes vieram à tona em 2005, quando já integrava o ministério Lula e um testemunho dado por ela para um livro sobre mulheres engajadas na resistência ao regime militar foi reproduzido na imprensa brasileira.
Na ocasião, ela descreveu a progressão da tortura: começou com a palmatória. Depois ela foi despida, pendurada de cabeça para baixo e submetida a choques elétricos em diversas partes do corpo, incluindo seios, genitais e cabeça.
Acreditava-se que as sessões de tortura infligidas a Dilma tivessem se limitado aos períodos em que esteve em prisões de São Paulo e do Rio de Janeiro, até que o resultado de uma investigação publicada em junho último revelou mais interrogatórios, incluindo os realizados num período de dois meses numa prisão militar em Minas Gerais. Em 2001, quando Dilma ainda era uma desconhecida integrante do governo gaúcho, ela relatou a um investigador de Minas como seus interrogadores daquela ocasião bateram em seu rosto, deformando sua arcada dentária. Um dente apodreceu em decorrência do espancamento, contou ela, e acabou sendo arrancado por um golpe desferido por outro torturador, já em São Paulo.
Robson Sávio, o pesquisador que a entrevistou em 2001, disse que ela não teria obrigação de responder ao pedido de depoimento, já que a comissão constituída em Minas Gerais já havia reunido provas de que ela havia sido torturada. Mas ela concordou em falar. Ao final do encontro, após relembrar as lesões resultantes dos diversos interrogatórios—incluindo uma hemorragia uterina—ela estava em prantos.
“Eu me lembro do medo quando minha pele tremia”, afirmou, nesse depoimento de 2001. “Uma coisa dessas marca a gente pelo resto da vida”.
O tenente-coronel reformado Lima Lopes, identificado como um dos torturadores de Dilma em São Paulo e ainda morando no Guarujá, nega as acusações e, em tom desafiador, a chama de “boa guerrilheira”. Outros militares adotam posição semelhante.
Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-secretário-geral das Forças Armadas colocou em dúvida, numa entrevista à imprensa, que Dilma tenha sido torturada. Ele também alegou que ela integrava um grupo armado que queria implantar uma “ditadura soviética”, no País. Tanto os guerrilheiros quanto as forças de repressão cometeram abusos, afirmou ele. “Houve tortura durante o regime militar? Houve”, afirmou. “Existe tortura no Brasil hoje? Sim”, acrescentou, referindo-se às deploráveis condições em algumas prisões brasileiras.
Dilma Rousseff, que afirma jamais ter tomado parte em ações armadas, optou por não confrontar-se publicamente com esses militares. Enquanto isso, a Comissão da Verdade segue seu trabalho, sem interferência da presidenta. Paulo Sérgio Pinheiro, destacado estudioso que integra a comissão, conta que a única vez que se encontrou com Dilma foi quando ele e os outros membros do grupo tomaram posse, em Brasília.
No Rio de Janeiro, a tentativa de desvendar o passado levou autoridades estaduais a pagar indenizações a cerca de 900 pessoas torturadas durante a ditadura. Entre elas está Dilma Rousseff, que declarou em maio que iria doar os cerca de R$ 20 mil ao Tortura Nunca Mais, grupo que investiga os abusos do regime militar.
Mesmo assim, apesar de todos esses fatos, a reconciliação permanece distante. Ativistas de Direitos Humanos foram surpreendidos, em julho deste ano, com a invasão da sede do Tortura Nunca Mais. Arquivos com relatos do tratamento psicológico ministrado às vítimas da tortura foram roubados.
(Livre tradução da reportagem de Simon Romero, correspondente do jornal The New York Times no Brasil).