Entre outras coisas, a Resolução aprovada conclama os países a respeitar e proteger o direito à privacidade, no contexto da comunicação digital, e a tomar medidas para por fim às violações desse direito, inclusive assegurando que a legislação nacional pertinente seja condizente com as obrigações assumidas pelos Estados, no âmbito do direito internacional relativo aos direitos humanos.
Trata-se de um recado direto aos EUA, cuja legislação interna permite a violação sistemática do direito à privacidade, principalmente quando se tratam de empresas, governos e cidadãos estrangeiros. Com efeito, o Patriot Act, de 2001, e, principalmente, o Ato de Proteção da América, de 2007, tornaram possível vigiar livremente “alvos”, caso fosse “comprovável” que eles eram “ameaças externas”.
No caso de alvos norte-americanos, é necessária a autorização de um juiz, que as fornece por atacado. No caso de alvos estrangeiros, a coisa é bem mais fácil: basta o livre arbítrio dos espiões. Dessa forma, a NSA e outras agências passaram a atuar mais intensamente nas telecomunicações internacionais e nos fluxos mundiais de dados que passam por servidores ou satélites norte-americanos. A legislação foi renovada por Obama em dezembro de 2012.
Acontece que tal legislação colide com as convenções e tratados internacionais relativos aos direitos humanos, principalmente aqueles firmados no âmbito das Nações Unidas.
A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 e firmada pelo Brasil e pelos EUA, determina, em seu Artigo XII, que:
Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
O importantíssimo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adotado em 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e ratificado pelos EUA, também consagra, em seu artigo 17, o direito à privacidade e à inviolabilidade das correspondências.
Mas a Resolução aprovada não fica apenas numa estéril condenação retórica da bisbilhotagem despudorada dos EUA e dos Five Eyes. Ela prevê desdobramentos concretos para o caso. Com efeito, a Resolução solicita ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos que apresente um relatório sobre a proteção e a promoção do direito à privacidade, no contexto da vigilância e intercepção de comunicações digitais, ao Conselho de Direitos Humanos e à própria Assembleia Geral, que deverão tomar providências adicionais sobre o tema. Além disso, ela esclarece que foi decidido que a Assembleia Geral tratará do tema em sua próxima sessão. Portanto, a Resolução aprovada é somente um primeiro passo de muitos outros que poderão se seguir.
Felizmente, a Assembleia Geral da ONU está levando o assunto a sério, como deve ser.
Infelizmente, o mesmo não aconteceu no Brasil.
Quando surgiram as denúncias de Snowden/Greenwald sobre a espionagem à presidenta Dilma, à Petrobras e ao Ministério de Minas e Energia, a reação de boa parte da nossa oposição, que obviamente inclui a grande mídia, foi simplesmente patética.
De fato, a nossa indefectível e ruidosa matilha de vira-latas preferiu justificar a arapongagem em escala mundial e ridicularizar os protestos do Brasil. Surgiram, assim, as tentativas de apresentar a agressão à soberania do Brasil e aos direitos dos cidadãos brasileiros como algo praticamente natural, uma consequência da espionagem que todo o mundo pratica, “desde que o mundo é mundo”. Alguns podem mais, outros podem menos, argumentavam. Os EUA podem mais, portanto fazem mais, diziam. Natural como a chuva, claro como água.
Até mesmo a correta decisão da presidenta de não ir a Washington foi apresentada como uma esperta “jogada eleitoral”, apesar do fato notório de que a política externa nunca teve peso em quaisquer eleições no Brasil.
Para a nossa brava oposição, ou parte dela, era mais importante ridicularizar o governo que defender o Brasil e seus cidadãos.
Um relevante jornal de circulação nacional chegou até a publicar reportagens informando que a ABIN havia seguido as atividades de diplomatas norte-americanos e iranianos. Tais reportagens, com seu timing malicioso, tinham motivação obscura, mas subtexto bastante claro: o Brasil também espiona, portanto não pode criticar os EUA e os Five Eyes.
Ora a diferença entre a contrainteligência legal e restrita efetuada pela ABIN e a espionagem generalizada contra chefes de Estado, empresas e cidadãos comuns de todo o mundo realizada pela NSA e outras agências norte-americanas é simplesmente abissal. É como querer comparar um sujeito que eventualmente usa uma arma para se defender de um ataque com um psicopata que sai atirando a esmo contra todo o mundo.
O que os EUA atualmente fazem não é mais espionagem, no sentido clássico. É um gigantesco Big Brother mundial que afeta a privacidade e os direitos de qualquer cidadão.
Mais do que isso: é um novo instrumento de domínio geopolítico. Como bem escreveu Julian Assange, no livro Cypherpunks (Boitempo, 2013): “a nova alavanca da geopolítica mundial consiste nos dados privados de milhões de cidadãos mundo afora. Assim como o controle de reservas de gás permitiu à Rússia influenciar a Europa, o controle dos cabos de fibra ótica da infraestrutura global da Internet permitirá aos EUA influenciar cidadãos dentro e fora do seu território”. Não tem absolutamente nada a ver com o monitoramento de perigosos terroristas, como Angela Merkel.
A ONU, provocada pelo Brasil e pela Alemanha, parece que entendeu a gravidade do assunto e a séria ameaça à democracia que ele representa. É difícil dizer se essa movimentação que se inicia coibirá a fúria bisbilhoteira unilateral e ilegal dos EUA. Mas, pelo menos, lá fora as denúncias do Brasil estão sendo levadas a sério.
Já aqui dentro a matilha ri das agressões sofridas. Ri da própria desgraça, pois é, mesmo que não queira, brasileira também. Talvez não seja uma matilha de vira-latas.