O termo “pós-verdade”, com a definição usada na última década, sobretudo na eleição de Donald Trump e o processo do Brexit, foi usado pela primeira vez em 1992, pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, de acordo com o registro do departamento da Universidade de Oxford, responsável pela elaboração de dicionários.
Uma forma razoavelmente simples de explicar o neologismo é a prevalência da versão artificialmente construída sobre o fato, histórias fabricadas a partir de determinados contextos para parecerem verdades, com vistas a atingir objetivos específicos.
A forma de comunicação pelas chamadas redes sociais potencializa o uso do fenômeno da pós-verdade. No Brasil, o bolsonarismo elevou à enésima potência a capacidade de desvirtuar fatos para fazer valer sua narrativa.
Nas eleições de 2018, tínhamos um candidato que é pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, nem todos oriundos de casamentos. Esse era Jair Bolsonaro.
Seu adversário principal, Fernando Haddad, é casado há mais de 30 anos com a mesma mulher, e pai de dois filhos com ela. No entanto, foi o primeiro quem se consolidou como candidato da família cristã.
A explicação do evidente paradoxo pode ser encontrada na comunicação, como a informação alcançava a ponta, o eleitor. As fake news são a amostra da pós-verdade na interlocução e influência via redes sociais.
A busca do bolsonarismo pelo controle da verdade por meio da comunicação em redes continuou após a eleição e, recentemente, atingiu seu apogeu.
Premidos pelo que pode ser considerado o calcanhar de Aquiles da família – a ligação com as milícias –, iniciaram um processo de tentar envolver a esquerda em idêntica acusação, na evidente intenção de fazer disputa de narrativa não a partir de fatos, mas de fantásticas criações desviantes.
No último dia 12 de fevereiro, durante audiência da Câmara dos Deputados, sobre a PEC que autoriza a prisão em segunda instância, o ministro e ex-juiz Sérgio Moro, lançou a pérola de que o grupo de oposição que fez a redação de seu pacote – alcunhado erroneamente de “anticrime” – retirou as milícias do texto, favorecendo-as.
A fala tentou rebater a acusação de que Moro não investiga as milícias para proteger a família do presidente, mas o fato concreto é que não cabe nominar organizações criminosas senão em um erro grotesco de técnica legislativa.
Além disso, na redação sugerida pelo ministro, a pena para as milícias seria menor. Ainda assim, Moro deu a partida para a pós-verdade que une milicianos e a esquerda.
Ato contínuo, a morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão da PM do Rio de Janeiro, conhecido como Capitão Adriano, vem a ser o mais incrível episódio de pós-verdade já produzida pelo bolsonarismo.
Foragido há um ano, acusado de comandar a mais antiga milícia do Rio, o ex-militar tem um longo histórico de ligações com Flávio Bolsonaro, senador e filho do presidente da República, e com toda a família, tendo recebido homenagem de pai e filho, em seus respectivos mandatos, como um policial exemplar, mesmo após condenações por crimes.
O fato de Adriano Nóbrega ter sido morto pela Polícia Militar da Bahia, estado governado pelo Partido dos Trabalhadores, foi o mote que o bolsonarismo precisava para criar uma versão estapafúrdia e sem qualquer base de veracidade, de ligação e interesse do partido e do Executivo local na morte do miliciano.
Em aplicação direta do comezinho ditado popular segundo o qual “a melhor defesa é o ataque”, Flávio Bolsonaro se mostra em busca de quem teria executado seu amigo miliciano, fazendo postagens de “quem matou Adriano?” e chegando ao requinte de divulgar, nesta terça-feira (18), um vídeo no Twitter expondo a autópsia do ex-capitão – vídeo que em seguida se mostraria falso – e fazendo diversas afirmações sobre tortura, execução sumária e queima de arquivo.
Seu pai, em reforço, afirma que pediu uma perícia independente: “Já tomei as providências legais para que seja feita uma perícia independente. Sem isso vocês não têm como buscar até, quem sabe, quem matou a Marielle. A quem interessa não desvendar a morte da Marielle? Uma perícia independente vai dizer se ele foi torturado, se não foi, a que distância foram os tiros, e tinham dezenas de pessoas cercando a casa. A conduta não é essa, a conduta é cercar e buscar negociação para se render”, disse o presidente.
No esforço para criar uma versão factível que os afaste das suspeitas sobre a morte do ex-capitão, os Bolsonaros, pai e filho, apostam no esquecimento coletivo de que nunca colocaram em dúvida a palavra de policiais militares em suas ações, nem mesmo as que terminam em morte de civis; que sempre foram defensores da excludente de ilicitude, que autoriza a polícia a matar sem investigação; que defendem a tortura; que são entusiastas da máxima de que “bandido bom é bandido morto”.
Esqueçamos, pois, como eles pensam de fato, porque a questão agora é virar o jogo. É saírem das cordas das suspeitas de estarem envolvidos com a morte de um ex-policial que, assim como Fabrício Queiroz, convivia de perto com a família, e possuía informações que a sociedade não sabe e não saberá.
Virar o jogo implica proclamar que a esquerda é quem tem ligação com as milícias, por mais bizarra e estúpida que possa parecer – e seja de fato – a afirmação. É uma espécie de ditadura da palavra, de quem se imagina com o poder de dizer o que são os fatos, moldá-los e modificá-los ao seu bel prazer, para que se transmutem no que lhes interessa.
Nessa guerra, não basta apenas contraditar, porque não estamos na seara da disputa democrática de ideias. A tarefa política de quem defende a adoção de critérios éticos-morais no debate público é cada dia mais desafiante e requer, sobretudo, aprendizado.
A consciência de que precisamos forjar novas ferramentas para enfrentar o cinismo militante, eleito à categoria de narrativa, representado pelo bolsonarismo.