Zombar do sofrimento alheio é um inequívoco sinal de falta de caráter e mesquinhez. Em nível individual, revela certa sociopatia, a incapacidade de se colocar no lugar do outro e uma abissal baixeza de espírito. Em nível social, entretanto, a coisa é pior: revela os preconceitos e os ódios coletivos; revela a indiferença frente à sorte daqueles que não são considerados “iguais”; e revela, acima de tudo, a incapacidade de conviver democrática e respeitosamente com as diferenças.
Pois bem, a julgar pela reação de alguns setores políticos à séria doença do ex-presidente Lula, parte da nossa sociedade está realmente enferma. Com efeito, logo após a divulgação da doença de Lula, as redes sociais se encheram de mensagens de ódio explícito e de zombarias de vulgaridade inacreditável. Mesmo entre os “formadores de opinião”, que escrevem nos grandes jornais, não faltaram as ironias de mau gosto, cobranças estapafúrdias sobre quem está pagando o tratamento do ex-presidente, e maldisfarçada satisfação com a perspectiva de uma aposentadoria precoce de Lula.
Porém, o principal sintoma dessa reação social e moralmente patológica à doença de Lula é a campanha para que o ex-presidente faça seu tratamento pelo SUS.
Ora, antes de tudo é necessário indagar porque não houve campanhas semelhantes, quando outros políticos importantes ficaram doentes. O grande brasileiro José Alencar fez seu tratamento em caros hospitais nacionais e estrangeiros e ninguém se lembrou de incitá-lo a se tratar pelo SUS. O ex-presidente Itamar Franco, recentemente falecido, fez seu tratamento contra leucemia no Hospital Albert Einstein e não foi incomodado e insultado com “campanhas” desse tipo. Certamente, se Fernando Henrique Cardoso ficar doente, ninguém o mandará fazer tratamento em hospitais públicos.
O pressuposto por trás dessa campanha é o de que Lula, ao contrário de outras figuras públicas relevantes do país, não pode e não deve se tratar em bons hospitais. De acordo com a mentalidade distorcida dos que promovem a campanha, Lula, um nordestino de origem miserável, simplesmente não pertence ao mundo daqueles que podem circular pelos vistosos corredores do Sírio-Libanês. Além disso, consideram que ele tem de “padecer” no SUS para provar as mazelas da saúde pública brasileira, embora isso estranhamente não se aplique a todos os outros políticos que fizeram muito menos que ele pelo sistema público de saúde.
Bem, se há um político brasileiro que sentiu na pele as mazelas sociais do Brasil, inclusive as da saúde, é o Lula. Quando pequeno, ele e toda sua família simplesmente não tinham acesso a nenhum tipo decente de serviço de saúde, público ou privado. Lula, se tivesse ficado gravemente doente quando infante, teria morrido à míngua, como aconteceu, aliás, com nada menos do que quatro de seus irmãos. Em 1963, quando teve seu dedo cortado por um torno, Lula teve de esperar horas para ser atendido. Como conseqüência, o médico que o atendeu acabou por amputar todo o dedo, ao invés de tentar reimplantá-lo, como teria ocorrido num bom hospital particular. Em 1971, Lula perdeu sua primeira mulher e seu primeiro filho, vítimas de negligência médica. Até hoje, o ex-presidente afirma que: “Foi o pior momento de toda a minha vida. Ninguém me tira da cabeça que ela morreu por negligência da rede hospitalar do Brasil, por problema de relaxamento médico. Como ela, morrem milhões sem atendimento neste país”.
Será que os “bem-nascidos” e os “bem-pensantes” que promovem a campanha contra Lula passaram por experiências semelhantes?
Em razão dessa terrível experiência pessoal, Lula foi, sem dúvida, o presidente que mais se bateu pelo aprimoramento do SUS. Promoveu a distribuição de remédios a baixo custo, com o Programa Farmácia Popular, implantou o SAMU e as UPAs, serviços públicos de emergências, implementou o Brasil Sorridente, programa de atendimento odontológico pelo SUS, praticamente duplicou a cobertura do Programa Saúde da Família e investiu pesadamente em novas unidades de atendimento e no saneamento básico, mediante o PAC da FUNASA. Só não conseguiu fazer mais porque a oposição acabou com a CPMF, provavelmente com o aplauso daqueles que hoje promovem essa campanha cínica contra ele. Mas, se depender da vontade de Dilma e de Lula, o Brasil terá, em médio prazo, um sistema público de saúde verdadeiramente universal, que atenderá a 200 milhões de habitantes com um mínimo de qualidade.
Os médicos estão otimistas: acham que Lula tem 80% de chances de obter a cura completa com o tratamento proposto. No entanto, é difícil vislumbrar um tratamento para essa enfermidade da mesquinhez humana que tomou de assalto parte da elite brasileira. Afinal, não há prótese para a falta de caráter.
Felizmente, é uma doença minoritária. A grande maioria da população brasileira, que aprovou maciçamente a gestão de Lula, tem os sólidos valores da solidariedade, do respeito ao próximo e às diferenças, da democracia, da civilidade. Como Lula, não são pessoas mesquinhas. Como Lula, ajudam a construir um país de forte caráter.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado