ARTIGO

O “marco temporal” da usurpação dos direitos indígenas

Povos indígenas estão reunidos em Brasília para acompanhar como os ministros decidirão sobre os direitos dos povos originários
O “marco temporal” da usurpação dos direitos indígenas

Foto: APIB

O julgamento finalizado em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, foi um marco muito importante pelo reconhecimento da demarcação em área contínua e não em ilhas. O processo oficial de legitimação dessa terra indígena já se arrastava há décadas, tendo sido formalmente identificada pela Funai em 1993. Nos 12 anos de conflito até a homologação houve a invasão de arrozeiros e a criação de mais um município dentro do local, além da divisão entre lideranças e comunidades indígenas locais.

A contenda alimentou todos os argumentos contrários ao reconhecimento dos direitos indígenas no país no estilo “muita terra para pouco índio”. Discursos como os que apontavam insegurança jurídica para o desenvolvimento econômico e que índios precisam ser integrados à sociedade nacional eram proferidos à exaustão para legitimar a posse daqueles que haviam invadido o território, usurpando direitos indígenas.

Na decisão do caso Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu que a demarcação de terras indígenas é um imperativo nacional decorrente da necessidade de o país preencher suas lacunas civilizatórias, celebrando pactos de paz com segmentos sociais que historicamente tiveram seus direitos negados.

Do ponto de vista jurídico-constitucional, não resta dúvida de que a demarcação em área contínua foi baseada em dados concretos, apurados mediante levantamento de informações de fontes diversas, na confirmação da ocupação indígena tradicional, feita com objetividade e precisão por laudos antropológicos elaborados por pesquisadores de indiscutível idoneidade, que, além disso, possuem profundo conhecimento da história dos povos originários da região e de seus costumes. A decisão foi, jurídica e socialmente, correta.

No entanto, o voto-vista do ministro Menezes Direito trouxe 18 pontos de inflexão ou limitação e, mais ainda, delimitou a demarcação à área tradicionalmente ocupada pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. A decisão ficou conhecida como “marco temporal”. Gestava-se, ali, um problema que, evidentemente, teria grande impacto para o futuro das demarcações em processo de reconhecimento ou mesmo já concluídas, mas aguardando homologação.

Em outubro de 2013, o STF decidiu, em embargos de declaração, que, embora a decisão sobre a Raposa Serra do Sol tenha sido um precedente importante, não tem caráter vinculante. Portanto, só se aplica àquele caso específico, e não a todos os casos sobre, conforme o voto do ministro Luís Roberto Barroso, seguido à unanimidade.

Em julho de 2017, com fundamento no art. 40 da Lei Complementar 73/93, o então presidente da República, Michel Temer, aprovou parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que determinou que a União deveria seguir a decisão do STF sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol em todos os processos de demarcação de terras realizados pelo governo federal. Na prática, o parecer adquiriu força de lei, em norma de seguimento obrigatório.

O que está atualmente na pauta do STF é uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI (Terra Indígena) Ibirama-Laklãnõ.

O julgamento do Recurso extraordinário nº 1.017.365, com repercussão geral reconhecida, volta à Corte nesta quarta-feira (25) com o voto do relator, ministro Edson Fachin, contra a interpretação da limitação de marco temporal. Do lado de fora, representantes de cerca de 173 povos de 20 estados da federação estão no acampamento Luta pela Vida, na capital federal.

O debate de aplicação do marco temporal, uma criatividade do ministro Menezes Direito em 2009, não tem qualquer relação com a ocupação milenar dos territórios pelos indígenas e desconheceu os processos de expulsão promovidos por não-índios e outras violências, bem como a tutela exercida até 1988 que os impedia de reivindicar diretamente seus direitos.

A invasão e exploração do solo brasileiro foram e seguem sendo determinantes para as transformações radicais que os povos originários passam no decorrer de cinco séculos. Um longo processo de devastação física e cultural que eliminou grupos gigantescos e inúmeras etnias indígenas, especialmente através do rompimento histórico entre os índios e a terra.

Por outro lado, mostra-se completamente contraditório e antijurídico que o tempo tenha se convertido em objeto de litígio para a formação da jurisprudência em matéria de direitos indígenas, quando a própria Constituição Federal de 1988 é considerada como paradigmática justamente por modificar a temporalidade destes direitos, com a ocupação tradicional definida na redação do artigo 231 da Carta, em conjunto com a pluralidade étnica e cultural, enfatizando o valor dessa diversidade para a identidade da nação e reconhecendo mecanismos jurídicos destinados a proteger os coletivos culturalmente diferenciados.

O reconhecimento do direito ao uso e desfrute da terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas, a título de direitos originários, é a materialização da proteção articulada no texto constitucional. A rigor, o estabelecimento de marco temporal aleatório, caso seja adotado pelo STF, com repercussão geral, será a imposição de limitações do próprio pluralismo étnico e cultural da nação brasileira.

Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato

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