Opinião pública derrota opinião midiática – Por Emiliano José

Velha mídia deixou jornalismo de lado para abraçar denúncias vazias

Foram muitas as leituras em torno do escândalo político-midiático. Destaco, no entanto, a contribuição de Venício A. Lima, notável pesquisador da mídia no Brasil. Duas de suas obras – uma voltada ao estudo da crise política e de poder no Brasil, outra, com vários autores, destinada à análise da mídia nas eleições de 2006 – foram essenciais para a elaboração deste texto, embora Lima, por obviedade, não tenha nada a ver com as interpretações que o autor faz a partir dessas leituras.  

A mídia, como se sabe, constrói discursos, e estes nunca são inocentes. Desde 2005, a mídia hegemônica brasileira pretendeu dar quase a impressão de que a corrupção nascera com o governo Lula, como tentara dar a mesma impressão em relação ao governo Vargas. O eixo da narrativa midiática, inclusive quando do julgamento da Ação Penal 470, é o de que nunca houvera tanta corrupção no Brasil. Não fora este o comportamento da mídia quando dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, e não por falta de matéria-prima, como se sabe. A privataria tucana está aí para confirmar o que digo.

Na esteira do bordão nunca houve tanta corrupção no Brasil, um novo vocabulário espraiou-se pelas redações, revelando a disposição de fazer o escândalo tornar-se patrimônio do senso comum: mensaleiros, partidos do mensalão, pós-mensalão, valerioduto, silêncio dos intelectuais, homem da mala, doleiro do PT, conexão cubana, operação Paraguai, conexão Lisboa, república de Ribeiro Preto, operação pizza, dança da pizza, dólares na cueca, entre outras expressões, muitas delas com nítida inspiração policial, e nada ocasionais.

Apesar de nunca ter sido provada a existência de algum tipo de mensalidade paga a deputados, mensalão particularmente tornou-se uma espécie de selo de toda a cobertura jornalística, rótulo de que se valiam os diversos veículos da mídia hegemônica. Essa utilização maciça da expressão tornou-a também de uso rotineiro no meio do povo, incorporou-se efetivamente ao senso comum para as mais variadas situações.

No caso da Folha de S.Paulo, a palavra mensalão tornou-se, por largo tempo, no decurso do escândalo político-midiático de 2005-2006, uma seção fixa. A Folha, aliás, podia lembrar que, caso provado mesmo dessa coisa de mensalão, era o do governo Fernando Henrique Cardoso, quando parlamentares confessaram que o projeto de reeleição tinha sido assegurado R$ 200 mil a cada um, como disseram dois deputados do Acre, na edição de 13 de maio de 1997 da própria Folha, ao jornalista Fernando Rodrigues.

Curiosamente, ou explicavelmente, a mídia, então, não pediu CPI, não insistiu em apuração, e a reeleição teve curso tranquilo. Fernando Henrique, reeleito, continuou a governar o Brasil, com as consequências conhecidas, inclusive constrangendo o país a recorrer ao FMI novamente, em janeiro de 1999, quando o Brasil quebrou.

O escândalo político-midiático foi sendo alimentado conscientemente desde maio de 2005, às vezes com material requentado, e tinha a pretensão óbvia de alcançar as eleições de 2006. Qualquer análise mais detida irá constatar a existência de um jornalismo errático em todo esse período, já que o nítido objetivo político – desgastar Lula, o governo e o candidato a presidente – prejudicou enormemente o próprio esclarecimento dos fatos. Mais semeou confusão do que ajudou a esclarecer o que acontecia.

A velha mídia deixou o jornalismo inteiramente de lado, abandonou o trabalho de investigação, recolheu o que podia das CPIs em andamento, e tudo se transformou num festival de denúncias vazias, irresponsáveis, como a famosa matéria de Veja sobre os dólares cubanos que teriam financiado o PT. Inúmeras matérias, muitas delas querendo-se reportagens, flertavam com uma ficção de baixíssimo nível, sem nenhuma preocupação com fatos, ou com verificações, checagens, essas coisas elementares, e diria sadias, do jornalismo liberal.

A mídia na construção da narrativa para aquele específico escândalo político usou e abusou do adjetivo suposto, como se com esse artifício estivesse anistiada para fazer todo tipo de acusação sem se comprometer, como se pudesse. Produziu inúmeras denúncias vazias, insinuou, acusou, fez ilações, generalizações, lançou suspeições a torto e a direito, desde que alcançassem sempre dirigentes do PT e membros do governo Lula.

Com isso, construiu quase que uma cláusula pétrea no desenvolvimento de sua cobertura: a presunção de culpa. Bastava ter qualquer indício, ou inventá-lo, para em seguida concluir que a pessoa envolvida era culpada. Cabia ao acusado correr atrás do prejuízo, tentar provar sua inocência, se inocente fosse. A mídia hegemônica tornou-se um tribunal de exceção, e o cidadão brasileiro restou inteiramente desamparado.

Artigo originalmente publicado na revista Teoria & Debate

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