ARTIGO

Os cadáveres insepultos das nossas revoluções impossíveis

Atos atentatórios à vida não podem persistir no tempo dissociados de uma resposta, resposta essa que não se restringe a um esforço punitivo, mas também à preservação da memória
Os cadáveres insepultos das nossas revoluções impossíveis

Foto: Migalhas

Desde o começo da pandemia a professora Deisy Ventura tem estimulado a comunidade acadêmica especialista em Direito Internacional a dialogar de um modo amplo com a mobilização popular em torno do substantivo “genocídio”, do adjetivo “genocida”, e a aplicabilidade de ambos ao presidente Jair Bolsonaro e às obras do seu governo. Não basta meramente explicar as categorias do Direito Internacional Penal, a gênese e jurisprudência do crime de Genocídio, ou mesmo o funcionamento do Tribunal Penal Internacional. É nosso papel explorar todos esses conceitos e mecanismos e então contextualizá-los, idealmente apontando caminhos para a atuação política de uma sociedade que busca não apenas salvar suas vidas, mas também a responsabilização pelas mortes evitáveis.

Uma das forças motrizes do Direito Internacional Penal, inclusive, é a busca por responsabilização, o combate à impunidade.

Atos atentatórios à vida, especialmente aqueles concretizados por meio dos crimes mais graves e escabrosos conhecidos pela humanidade, não podem persistir no tempo dissociados de uma resposta, resposta essa que não se restringe a um esforço punitivo, mas também à preservação da memória. É por isso que mesmo numa perspectiva abolicionista ou antipunitivista, um conflito reconhecido pela sociedade precisa ser adequadamente enfrentado, por práticas restaurativas ou outras soluções, para a partir daí construir uma nova realidade. Sem apreciação da realidade dos atos, e da extensão das condutas, é tirada da sociedade a oportunidade de refletir sobre suas consequências, suas vítimas, e, especialmente, quais engrenagens da própria sociedade proporcionaram aquelas condutas. Não só o Estado, mas outros arranjos políticos e econômicos podem ser instrumentais para promoção sistemática da morte.

A busca pela redução da brecha de impunidade (close the impunity gap), o espaço de não-direito onde não há responsabilização, é catalisadora da própria formação do Direito Internacional Penal, partindo do pressuposto que os sistemas jurídicos nacionais são soberanos e habilitados para promover a persecução penal, mas ainda assim reconhecendo que isso nem sempre acontece.

Há condições em que os Estados demonstram desinteresse ou incapacidade (unwilling and unable) de assegurar o cumprimento da lei. Há ainda alguns comportamentos específicos que são, por natureza, internacionais (como o crime de agressão, quando um Estado invade o outro), e que por isso excedem à jurisdição de um único país. A jurisdição penal no âmbito internacional é complementar à doméstica, e parte da premissa que seu papel é, diante das limitações dos Estados, ir além dessas limitações, justamente para impedir a impunidade.

Que os assassinos saibam que não há onde se esconder, que seus atos não serão esquecidos. Alguém vai cobrar responsabilidade. Nas palavras do romeno-estadunidense Benjamin Ferencz, “não pode haver paz sem justiça, nem justiça sem lei e nenhuma lei significativa sem uma corte a decidir o que é justo e legal sub qualquer circunstância”. O combate à impunidade é um encadeamento que une num só compromisso o sistema judicial e a sociedade que almeja viver em harmonia.

Wagner Artur Cabral é assessor parlamentar do senador Jean Paul Prates (PT-RN)

Artigo originalmente publicado no medium.com

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