Muito se tem falado sobre a retomada do papel do Estado. Laura Carvalho[1] se refere à “volta do Estado” para designar a explicitação das funções estatais durante a pandemia. Em que condições o pós-pandemia poderia marcar esta retomada? A maior presença do Estado é atestada pelo orçamento da pandemia, de R$ 500 bilhões. Metade do valor se refere ao auxílio emergencial. Segundo a Pnad Covid-19, referente a maio de 2020, os domicílios mais pobres receberam 49% de sua renda habitual do trabalho, mas, com o auxílio emergencial, alcançaram 99% de sua renda usualmente recebida[2].
Outra política que sai da crise com mais reconhecimento é a saúde. O SUS, mesmo diante dos ataques nos últimos anos, vem cumprindo papel essencial. Os gestores habilitaram mais de 10 mil leitos de UTI para o enfrentamento da pandemia.
Contudo, os resultados não revertem automaticamente em mais financiamento do gasto social a partir de 2021. Dando um passo atrás, o ano de 2016 foi decisivo no desmonte de políticas sociais. A EC 95 foi aprovada sob o pressuposto do Estado como raiz da crise. E aí vem o ponto chave: a política econômica está imersa em elementos discursivos que, inscrevendo-se nas práticas institucionais, tendem a moldar o Estado. Em 2016, cristalizou-se a ideia de que a crise se devia a um Estado corrupto e gastador, convertendo-se no que Laclau chama de significante vazio[3].
Em momentos de crise, em que o Estado não é capaz de processar demandas, elas funcionam como excedente ao sistema, suscitando a ideia do todo harmônico perdido. Neste contexto, um elemento passa a expressar e constituir as demandas, integrando-as em uma cadeia de equivalências. No caso brasileiro, este signo foi o combate ao Estado corrupto e gastador, transformando a corrupção e a ineficiência estatais em razão do desemprego, das filas do SUS e assim por diante.
O golpe parlamentar de 2016 ocorre em nome do combate à crise causada pelo Estado. Para tanto, foram decisivas a Operação Lava Jato e a economia conservadora, que atribui a retração do PIB aos gastos. O Estado patrimonialista seria também um Estado que gasta excessivamente. Num aparente paradoxo, os movimentos por melhores serviços públicos, iniciados em junho de 2013, se convertem na EC 95. Ela não é uma regra pró-cíclica, como a Lei de Responsabilidade Fiscal.
O teto induz a redução do Estado pelo menos até 2026. O congelamento do piso de aplicação de saúde poderá levar o gasto do setor de 15,8% da Receita Corrente Líquida em 2017 para menos de 10%, em 2036. Outros países são afetados pelas políticas de austeridade. Na Itália, o gasto público de saúde passou de 7% para 6,4% do PIB entre 2010 e 2019. Todavia, em nenhum país as regras de gasto implicam a constitucionalização por até vinte anos do decréscimo da despesa em relação ao PIB, como no Brasil.
A EC 95 coloca a política fiscal “a salvo” dos pleitos populares, reforçando a “desdemocratização” do Estado[4]. É aqui o terreno no qual se trava a luta política, pois os defensores da austeridade apontarão a ampliação da dívida como motivo para a defesa do teto. Para melhor compreensão, é preciso examinar as posições do governo Bolsonaro.
Na Europa, o fortalecimento da extrema direita resulta dos efeitos do neoliberalismo sobre a população. O discurso antissistêmico da extrema direita aparece como crítico das políticas liberais e pró-globalização. Já no Brasil, a extrema direita se valeu da ideia do Estado em contraposição à sociedade, articulando austeridade e crítica às instituições. Não se trata de misturar duas forças diversas, mas apontar suas convergências. Marcos Nobre lembra que a união de Bolsonaro e Paulo Guedes reside na busca da desconstrução do pacto social da Constituição[5].
Manter a lógica de outsider é incompatível com o ato de governar, que envolve agir junto ao sistema. A tônica do governo é a destruição[6], ainda que ele possa capitalizar efeitos de medidas aprovadas pelo Congresso. Do caos se tentará reforçar a crítica às instituições, atribuindo ao distanciamento social a razão da piora econômica. A extrema direta renova os termos do antagonismo para a pandemia: o establishment, que impõe restrições à liberdade, versus o cidadão simples, afetado pelas medidas sanitárias.
Está em aberto saber se o antagonismo, nos termos postos, seguirá eficaz. O Brasil já ultrapassa dois milhões de casos e 80 mil óbitos por Covid-19. Sob a lógica governista, a pandemia não produzirá mudanças no financiamento do sistema de proteção. Os encadeamentos entre discurso antissistema e austeridade levam à retomada das regras de gastos em 2021. Se o orçamento for encaminhado no piso de aplicação da EC 95, a saúde perderá R$ 35 bi em relação aos valores de 2020.
Os progressistas deveriam adotar uma estratégia populista de esquerda, nos termos de Ernesto Laclau, apostando em reformular o antagonismo e convertê-lo numa luta entre as elites e “os de baixo”. É fundamental recuperar a ideia de que, num país desigual, o ato antissistêmico deve induzir a democratização do Estado, começando por regras fiscais que viabilizem políticas sociais universais. Eis a tarefa que os defensores do SUS têm pela frente.
Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB