No dia 7 de setembro do ano de 2021 na cidade de Brasília, capital da República, fileiras e fileiras de ônibus de luxo vindos dos mais diversos lugares do país eram estacionados na Esplanada dos Ministérios e em locais próximos. Deles desciam pessoas vestidas de verde e amarelo que passavam a se aglomerar no gramado em frente ao Congresso Nacional. Várias portavam faixas com frases pedindo a “volta do AI-5”, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), além de vários ataques a ministros daquela Corte. Em horários específicos, era possível ver pessoas distribuindo marmitas de alimentação aos “militantes”.
O presidente da República lá esteve e, em um discurso inflamado sobre “uma pessoa específica” que estaria “barbarizando” a população, afirmou que não aceitaria mais “prisões políticas”.
Das diversas perguntas possíveis sobre o ato autointitulado democrático que pedia o fim da democracia, farei apenas uma: quem pagou por isso?
A decisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes, na última terça-feira (23), estipulando uma série de medidas cautelares contra os oito empresários bolsonaristas que foram alvos de notícia-crime protocolada pela Coalizão para Defesa do Sistema Eleitoral, por defenderam um golpe de Estado em caso de vitória do ex-presidente Lula nas eleições, em mensagens de grupo de WhatsApp, causou grande polêmica sobre a legalidade da ação.
Além de mandados de busca e apreensão, Moraes determinou quebra de sigilo e bloqueio das contas bancárias dos empresários, de suas contas nas redes sociais e tomada de depoimentos. Os procedimentos atendem à investigação que apura o financiamento da disseminação, nas redes sociais, de ataques às instituições, ao Estado de Direito e à democracia.
Informações sobre esse grupo começaram a ser levantadas nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. E são hoje um dos pilares do Inquérito 4.874/DF, que investiga as milícias digitais. Delegados da Polícia Federal (PF), que respondem diretamente a Moraes, apontaram a existência de quatro núcleos: o primeiro voltado para produção de notícias falsas, o segundo de divulgação desse material nas redes, um terceiro composto por políticos, e um quarto por financiadores, onde se situam os empresários ora investigados.
Parte curiosa do debate é ver membros/as do Ministério Público Federal (MPF), incluindo o próprio Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se insurgindo contra as medidas tomadas. Isso porque a investigação sobre a existência de uma organização criminosa que atente contra o Estado de Direito, as instituições e a própria democracia deveria ser de interesse do Ministério Público (MP), aliás de impulso do próprio, vez que faz parte de suas atribuições constitucionais é de velar pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis.
Ao invés disso, membros do MP se somam a uma fala que tenta desqualificar o Inquérito, minimizando a gravidade das conversas no aplicativo WhatsApp em que empresários defendem a possibilidade de golpe no Brasil. Uma procuradora e ex-coordenadora da operação Lava Jato que, como é de conhecimento geral, nunca se importou com o cumprimento de qualquer norma processual penal ou constitucional, chegou a dizer, em uma entrevista, que os empresários são “senhores de idade” sem qualquer capacidade para articular um golpe de Estado. Uma afirmação bizarra, pra dizer o mínimo. Sobremaneira, porque a idade dos empresários, mesmo se idosos fossem, não entra em questão. Suas gordas contas bancárias e como podem usá-las para finalidade ilegal, sim.
O número de apoiadores lavajatistas que aplaudiram conduções coercitivas sem qualquer intimação prévia, o espetáculo das delações premiadas de réus presos, prisões preventivas ilegais produzidas por um juiz e procuradores que se comportavam como pop star, e que agora apontam o dedo para as medidas adotadas por Alexandre de Moraes, suscitando possíveis ilegalidades, é impressionante. Faz quase parecer que temos uma maioria de juristas garantistas no país, preocupados com o direito de investigados, buscando evitar excessos. Seria a prática do óbvio, se o óbvio não atendesse pelo nome de hipocrisia.
Estamos, como sociedade brasileira, diante de desafios históricos. Dentre eles, a existência de coletivos, compostos por cidadãos que ocupam cargos públicos e outros com alto poder econômico, com intenção de utilizar dos instrumentos a que têm acesso para desestabilizar a democracia, questionando o resultado das eleições de 2022, sob o forjado argumento de fraude nas urnas eletrônicas.
Evidentemente, a solução jurídica a ser buscada pelos órgãos judiciários, seja o STF ou qualquer outro, deve ter por base as garantias de investigados e réus e guiar-se pelos valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, que são fruto de uma longa evolução histórica.
Por outro lado, as conversas que vieram a público, divulgadas por um membro do grupo de WhatsApp, não podem ser interpretadas de forma leviana como vêm sendo por alguns atores.
Tanto pela identificação social de seus interlocutores, quanto pelo seu conteúdo, os diálogos merecem uma abordagem séria e firme. Não se trata de um bate-papo informal entre estudantes ou amigos jovens, tampouco sobre temas banais. São cidadãos com altíssimo poder econômico falando em golpe com todas as letras, pregando de maneira direta o afastamento da democracia representativa, com o retorno do Estado de Exceção, deixando de reconhecer o resultado das eleições livres e diretas que serão realizadas em outubro próximo.
São cidadãos que podem mobilizar altos recursos para viabilizar suas intenções. O que guarda total pertinência com o objeto investigado no inquérito das milícias digitais. O que precisa se verificar é, a partir dos indícios, o que está em operação.
Não há qualquer dificuldade em alinhavar a defesa dos princípios garantistas à defesa da própria democracia, sem a qual eles não podem subsistir. O que implica, na prática, a necessidade de atingir o coração da arquitetura da aventura golpista de Jair Bolsonaro e seus asseclas, que é o financiamento dos atos.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato