A audiência, solicitada pelo presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA), senador Jaques Wagner (PT-BA), reuniu técnicos e pesquisadores em torno de um dos mecanismos criados pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012): o Cadastro Ambiental Rural (CAR), registro público eletrônico, obrigatório a todos os imóveis rurais, para integrar informações e auxiliar no combate ao desmatamento e no planejamento ambiental. Jaques Wagner elencou alguns dos problemas do CAR, como sobreposição de registros de propriedade em terras indígenas e cadastros ilegais em terras públicas não destinadas, como as unidades de conservação.
“É preciso debater estratégias de aprimoramento deste sistema como forma de garantir que os filtros do CAR não permitam ou validem registros sobre estas áreas”, advertiu o senador.
Na avaliação da ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Maria Tereza Uille Gomes, uma das coisas a serem modificadas é o caráter declaratório do cadastro, “um problema seríssimo”. Ela defende que o CAR seja constitutivo, com a participação e o controle do poder público. Para Maria Tereza Uille, a regularização fundiária também deve ser acompanhada da regularização registral, de forma que as informações do CAR batam com as dos registros de imóveis.
“Fazer com que o cadastro ambiental seja vinculado ou indexado aos registros públicos, de acordo com a Lei n° 6015/1973 de Registros Públicos. Talvez esteja aí uma grande lacuna e essa lacuna causa insegurança ao CAR, que se sobrepõe a determinadas terras sem controle”, propôs a pesquisadora.
A validação do CAR preocupa também o vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), João Paulo Capobianco. Ele apontou que somente 0,43% dos 6,5 milhões de CARs protocolados até hoje foram analisados pelo poder público. Enquanto isso, mais da metade desses pretensos proprietários de 612,5 milhões de hectares aderiu ao programa de regularização ambiental.
“Temos um sistema que tem fé pública, mas que não é adequadamente verificado pelo poder público, que acolhe esses cadastros, mas não faz a verificação”, criticou Capobianco.
Essa questão foi salientada também pelo perito criminal da Polícia Federal Herbert Dittmar, que criticou o uso do CAR como ferramenta de grilagem: “hoje, apenas o recibo de inscrição do CAR é documento suficiente para solicitar crédito rural. Se o CAR é uma autodeclaração de posse, não pode ser utilizado como documento fundiário”.
Mas, segundo João Paulo Capobianco, é exatamente o que acontece. E a responsabilidade, segundo ele, é do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), que estaria incorrendo em crime de improbidade administrativa ao manter ativos CARs que se sobrepõem a terras públicas.
Terras indígenas
A diretora de Regularização Ambiental do SFB, Jaine Ariély Cubas Davet, defendeu-se. Segundo ela, esse controle cabe às unidades federativas. Já o SFB, garante, conta com filtros no sistema para impedir sobreposições a terras indígenas, por exemplo. Mas Jaine não apresentou dados para contrapor o estudo apresentado minutos antes por Maria Tereza Uille, que, cruzando georreferenciamento e dados cartoriais, descobriu a sobreposição de nada menos que 2.789 CARs em 118 milhões de hectares de 624 territórios indígenas em 24 estados.
E ainda há mais denúncias. O pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho, afirmou que metade do desmatamento na região ocorre em florestas públicas não destinadas, que englobam 56,5 milhões de hectares e deveriam ser protegidas. Só que em 18,6 milhões desses hectares, há registro de CAR ilegal, utilizado pelos criminosos para desmatar. Além do sério problema ambiental, Paulo Moutinho chama atenção para a consequência econômica.
“Se a grilagem avançar como está avançando, com fraude nos CARs sobre essas florestas, nós poderemos quebrar a rota dos rios voadores e causar problemas sérios, não só para a floresta, mas também para a agricultura, que responde por aproximadamente 20% do PIB do país”, sustentou.
A preocupação com a Amazônia foi pontuada também pelo líder do PT, Paulo Rocha (PA), que tangenciou a recente reunião de Bolsonaro com o bilionário Elon Musk: “A audiência se dá neste momento em que o governo brasileiro está cedendo o mapeamento das nossas riquezas para os bilionários internacionais”.
PL da Grilagem
Jaques Wagner aproveitou o debate para criticar o projeto (PL 510/2021), em análise no Senado, que a ala governista chama de proposta de “regularização fundiária”. O presidente da CMA lembrou que com a lei atual já é possível entregar o título de propriedade de 80% a 85% das terras não regularizadas.
“Eu estou falando de terras que legalmente merecem ser regularizadas, e que, portanto, a nova lei me parece um açodamento desnecessário. Melhor seria instrumentalizar o Incra e todo o segmento responsável para regularizar. E a pressa sempre me parece que é para regularizar os 15% que não podem ser regularizados com a lei atual. Mas, reparem: quando se fala em regularizar se fala em fazer o cadastro. Agora, se o cadastro está admitindo, por determinadas falhas, a regularização de terras que não são regularizáveis, é preciso revisitar o CAR antes de falar em regularização”, ponderou Jaques Wagner.
O senador afirmou, ainda, que em conversa com o relator do PL da Grilagem propôs uma mudança no texto. “Propus que, mesmo que tenha uma nova lei, que no caput esteja escrito que a regularização será na ordem crescente das dimensões das terras a serem regularizadas. Dessa forma, faremos justiça social, porque vamos regularizar terras efetivamente de pequenos agricultores”.