Na última quinta-feira (16), uma liminar da Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou que a União “abstenha-se de praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade do Professor Paulo Freire na condição de Patrono da Educação Brasileira”, em uma ação movida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos.
O simples fato de que se precise recorrer à Justiça para impedir o vilipêndio da memória de Paulo Freire descreve, em linhas traçadas a navalha, a escuridão do beco para onde o atual governo insiste em tanger o Brasil.
Um beco, aliás, onde se cantam odes ao espectro infame de um torturador, enquanto se ultraja o que de melhor foi gestado por esta nação.
Mas essas trevas não são o Brasil que nos legou Paulo Freire — e Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.
Paulo Freire, cujo centenário comemoramos neste domingo (19), é um dos gigantes que o Brasil deu ao mundo. Um gênio da raça reconhecido no planeta inteiro por sua formulação teórica e sua prática na arte do ensino.
Sua “Pedagogia do Oprimido”, escrita em 1968, é o terceiro livro mais citado em trabalhos acadêmicos sobre ciências sociais em todo o mundo. Seu método de ensino é adotado em diversos países.
Esse nosso Paulo Freire é detentor de nada menos do que 35 títulos de Doutor Honoris Causa concedidos por prestigiadas instituições, mundo afora. Um deles lhe foi conferido pela quase mitológica Universidade de Bolonha, prestes a completar 1.000 anos de atividade, a mais antiga do Ocidente.
Paulo Freire é também o Patrono da Educação no Brasil, título definido em lei em 2012 e que as criaturas da sombras querem revogar, por meio de iniciativas legislativas que não vão prosperar.
Mas, afinal, qual é o “pecado” que faz os amantes da escuridão investirem contra esse patrimônio radiante que é o legado de Paulo Freire?
O que torna a Pedagogia de Paulo Freire tão revolucionária, tão desafiadora e tão necessária é uma constatação simples: “Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo”, afirmava o professor.
É uma pedagogia na qual cabe a quem ensina reconhecer, acolher e respeitar o saber de quem aprende. Sim, porque não existe um “saber” único, absoluto e intocável. Existem, isso sim, os saberes de cada um — de cada povo, de cada comunidade, de cada indivíduo.
E é o conjunto dos saberes — plurais, diversos, contraditórios, inelutavelmente incompletos e tão vocacionados a se complementarem — que constituem o sopro que anima essa instigante aventura que é caminhada humana sobre a terra.
Mas perceber que um trabalhador rural conseguiria soletrar e reconhecer a representação escrita de “enxada” antes de ler e escrever “colarinho” assustou e ainda assusta a elite e os aspirantes a fidalgos.
Promover um aprendizado atento ao conjunto de referências que cada um já carrega consigo empalidece o processo de mera transmissão de conhecimento de cima para baixo.
A pedagogia de Paulo Freire começou a ser formulada no início dos anos 1960. Um exemplo inaugural de sua prática vem de Angicos, no meu Rio Grande do Norte, onde ele trabalhou na alfabetização de adultos em 1963, com imenso sucesso.
Essa caminhada libertadora foi abortada pelo Golpe Militar de 1964 e Paulo Freire chegou a ser preso pelo crime de ensinar gente a escrever e a ler criticamente — não só textos, mas o mundo a seu redor.
Hoje, novamente, essa concepção libertadora e essa aposta no empoderamento estão de novo na mira do obscurantismo. Não adianta: a Educação maiúscula que tem Paulo Freire como seu patrono é um sol que sempre vai vencer a treva e sempre vai aquecer os corações e mentes vocacionados à liberdade e à felicidade que habitam o peito e a mente da maioria dos brasileiros.
Paulo Freire, presente. Hoje e sempre.
Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco