Marlúcia de Moura Machado, 55, maranhense que há 41 anos mora em Águas Lindas (GO), arrepende-se de poucas coisas na vida. Criou seus dois filhos com bastante esforço – hoje tem quatro netos – e viaja à terra natal, próxima a Codó, a cada três anos, em média. Levanta as mãos e sobe os olhos quando perguntada sobre se manteve o emprego na pandemia.
“Mas se pudesse voltar atrás, não votava naquele político”, admite, num sorriso envergonhado, quando provocada sobre sua escolha para a Câmara dos Deputados em 2018. Marlúcia faz parte da minoria que lembra em quem votou na última eleição proporcional. É que dois em cada três brasileiros não fazem ideia, revelou recente pesquisa Quaest, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em julho.
Só que os principais assuntos nacionais – e que influenciam a vida de todos os brasileiros – passam por eles e elas (sim, uma incômoda minoria de 15% das cadeiras federais foram conquistadas por mulheres em 2018). É o caso do auxílio emergencial, que, graças a pressão do Congresso, foi ampliado e prorrogado, em junho de 2020, mesmo contra a vontade do governo.
Efeitos no dia a dia
Entre as áreas mais afetadas pela política de desmonte desse governo, e que buscou apoio no Congresso Nacional, está a Cultura. De saída, Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura e, ano a ano, asfixiou o orçamento do setor, a ponto de aprovar, para 2021, o mesmo volume de recursos de 20 anos atrás. Em relação a 2015, esse emagrecimento forçado chegou a 80%, afundando numa miséria planejada órgãos como a Fundação Nacional de Artes (Funarte), a Fundação Biblioteca Nacional e a Fundação Cultural Palmares. Isso sem falar nos ataques contínuos à Lei Rouanet, no desvio de recursos de outras rubricas da Cultura para atender a emissoras de TV amigas, entre outras práticas.
Além disso, Bolsonaro vetou projetos como a Lei Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo, que, juntas, injetam no setor cultural quase R$ 7 bilhões. Ambas tiveram seus vetos derrubados pelo Congresso no primeiro semestre. A Lei Paulo Gustavo, de autoria do líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), foi construída para dar fôlego ao setor no pior momento do país, a pandemia.
Afinal, os artistas foram os primeiros a perder seu ganha-pão, logo que o respeitável público saiu de cena, em março de 2020. Sob a cara de paisagem do governo, muita gente passou aperto. O setor emprega cerca de 5 milhões de pessoas, um quinto disso de forma direta, e movimenta R$ R$ 170 bilhões ao ano. Mas na periferia e nas pequenas cidades o problema se agravou ainda mais.
Que o diga a também maranhense Thay Brito, 30, nascida em São Luís e moradora, igualmente, de Águas Lindas. Produtora cultural desde 2017, ela estava pronta para executar um projeto municipal, o “Rua do Lazer”, que acabou cancelado em março de 2020. Artistas do graffiti, do hip hop, do break, todos literalmente dançaram.
A importância do trabalho do Congresso Nacional se reflete na recuperação dos projetos de Thay Brito, dois anos depois. E seria antes, caso a base governista e o Planalto não tivessem trabalhado contra leis de apoio ao setor. Recentemente, ela e seus colegas de coletivo de arte e cultura foram contemplados num dos primeiros editais da Lei Aldir Blanc.
“O 3º setor tem muita dependência do governo e da iniciativa privada, mas é preciso dizer que faz parte de uma ação social. Conseguimos entrar no primeiro edital e estamos concorrendo em outros. Espero que, daqui para frente, possamos ter mais autonomia e acesso a recursos de forma menos burocratizada”, afirmou Thay, que se prepara para colocar o bloco na rua no município goiano.
Mudança de postura
Marlúcia e Thay moram na mesma cidade e têm em comum o fato de não possuírem qualquer vínculo partidário. De resto, são trajetórias bem distintas. Thay participa do fórum de cultura da cidade, e está habituada ao funcionamento das casas legislativas. Já Marlúcia, aprendeu isso mais recentemente. Até 2020, ela estava entre os 55% da população brasileira que ignoram o trabalho de um deputado.
Daí o arrependimento tardio do voto em 2018 para deputado federal. A empregada doméstica, que trabalha de segunda a sexta no DF e sabe que Bolsonaro, quando era deputado, votou contra seus direitos trabalhistas, conta que esse outro candidato à Câmara, o de 2018, sequer morava em Goiás: “depois eu soube que ele mora em Brasília, e só veio aqui foi pra pedir voto, mesmo”. Trata-se de algo comum no Entorno do Distrito Federal, onde fica Águas Lindas, município distante 50 quilômetros do centro de Brasília.
Acabou que o tal candidato a deputado não se elegeu, mas Marlúcia, agora mais lúcida, acha que quem perdeu a eleição foi ela. “A gente continua com os mesmos problemas de antes, até piorou”, relata. Águas Lindas, assim como outros municípios da região, sofre com falta d’água constante, comprometimento ambiental pelo assoreamento, desmatamento e crescimento desordenado, insegurança, falta de esgotamento sanitário, entre outros problemas.
Mesmo cheia de problemas, a cidade contribuiu com a eleição de vários parlamentares. Dos 10 candidatos mais votados em Águas Lindas, 6 viraram deputados federais por Goiás, aponta o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Curiosa, Marlúcia enxerga outro problema: seu postulante preferido a presidente da República em 2018, também derrotado, defende um modelo de sociedade totalmente diferente do que prega o candidato em quem votou para deputado federal. “Eu não tinha muita noção dessas coisas. O que era candidato a deputado eu nem conhecia, só votei porque meu filho falou que ele estava sendo indicado pelo dono do mercado onde [o filho dela] trabalhava, na época.” Aqui, outro dado: segundo a pesquisa Quaest, 22% disseram “considerar muito” a opinião de parentes na hora de decidir o voto. Ou seja, o principal “cabo eleitoral” na definição de voto para a Câmara dos Deputados é a família.
Marlúcia conta que entendeu melhor como as coisas funcionam depois de conversar com o irmão, 6 anos mais novo, que ainda mora no Maranhão. “Ele é da roça, e faz parte de um movimento [MST], lá.” Marlúcia tenta resumir o aprendizado: “ele disse que não adianta votar pro presidente que a gente quer e votar num deputado que é de outra linha, que pensa de outro jeito, entende?”
O senador Humberto Costa (PT-PE), que já ocupou cadeiras nas duas Casas do Congresso e acumula experiência tanto como integrante da base de governo como oposicionista, entende bem essa situação.
“Lula não vai governar sozinho. Ele vai precisar muito do Congresso Nacional para que possamos implementar os projetos de que o Brasil precisa para ser transformado. É por isso que temos de eleger deputados e senadores comprometidos com um novo país, que se engajem e se comprometam com as mudanças necessárias para salvar nosso povo deste quadro trágico em que foi jogado desde o golpe. Então, é importante o voto em parlamentares que joguem com Lula, que estejam na mesma equipe, para que a gente vença esse campeonato contra o time da miséria e da destruição do Brasil”, esmiúça Humberto Costa, coordenador da Campanha Lula em Pernambuco.
Para a eleição que acontece daqui a um mês e meio, Marlúcia disse já ter definido seus votos “de cabo a rabo”. Garante que não há um nome sequer que coincida com suas opções de 2018, mas que “eles se combinam.”
Renovação, aliás, parece ser a palavra-chave para o Congresso Nacional que toma posse em fevereiro de 2023. A mesma pesquisa feita em julho pela Quaest aponta que 86% dos eleitores consideram positivo que haja uma “alta renovação” nas cadeiras da Câmara e do Senado em outubro.
É o caso de desejar boa sorte à Marlúcia e à Thay.