ARTIGO

PL do Future-se formaliza chantagem explícita e inadmissível

A nova versão do Future-se reafirma o descompromisso do governo Bolsonaro com a autonomia e com o financiamento público das instituições federais de ensino
PL do Future-se formaliza chantagem explícita e inadmissível

Foto: Reprodução

Após a primeira versão do programa Future-se, divulgada em julho de 2019, ser rejeitada ou enfaticamente criticada pela maioria das instituições federais de ensino, e o Ministério Público Federal destacar que a consulta pública realizada pelo MEC desrespeitou a legislação que regulamenta esse tipo de consulta, o MEC submeteu uma nova versão do programa à consulta pública no dia 03 de janeiro de 2020, descumprindo o cronograma divulgado pelo próprio ministério, que previa o encaminhamento do projeto de lei ao Congresso Nacional até o dia 08 de novembro de 2019.

Realizada a consulta pública, o programa Future-se desapareceu da agenda do Ministério da Educação, e somente foi ressuscitado após o ministro Abraham Weintraub passar a ser investigado no inquérito das fake news, instaurado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, uma vez que suas intervenções na escandalosa reunião da cúpula do governo Bolsonaro, tornada pública pelo STF, configuram práticas criminosas que podem resultar inclusive na sua prisão.

Através da Mensagem n° 302, de 26 de maio de 2020, Bolsonaro encaminhou o programa Future-se ao Congresso Nacional, na forma de projeto de lei, que passaremos a analisar.

No que diz respeito ao mérito do PL, deve-se reconhecer o hercúleo esforço empreendido pelo Ministério da Educação na tentativa de maquiar a versão original, de modo a denotar apreço pelo art. 207 da Constituição Federal, que consagra a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades; e de modo a dissimular o descompromisso do governo Bolsonaro com o financiamento público das universidades e institutos federais de educação.

Abaixo da maquiagem, no entanto, emerge a essência, e a essência da versão original resta preservada na versão em debate. Sob o pretexto de fortalecer a autonomia financeira das instituições federais de ensino, o Ministério da Educação busca implementar uma reforma empresarial da educação, que agride a autonomia das universidades e dos institutos federais de educação, mantém ameaçada a manutenção das instituições de ensino, condiciona a liberação de recursos ao cumprimento de metas estabelecidas pelo MEC, interdita o processo de democratização do acesso ao ensino superior público e abre um horizonte de incertezas para a produção científica e tecnológica em nosso país.

O que merece destaque no PL encaminhado ao Congresso Nacional?

– Os temos “gestão” e “governança” foram eliminados dos eixos estruturantes do programa, uma vez que explicitavam a intenção do MEC de fragilizar a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades.

– Os “contratos de gestão”, que deveriam ser celebrados entre União, instituições federais de ensino e organizações sociais, passam a ser caracterizados como “contratos de resultado”, e devem ser celebrados entre União e instituições federais de ensino.

– Prevê que o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações estabelecerão os indicadores para mensuração do desempenho, relacionados aos eixos do programa, de forma a contemplar incrementos de eficiência e economicidade, ouvidos as universidades e os institutos federais.

– Caso a universidade ou instituto federal atinja os indicadores de resultado estabelecidos pelo MEC e MCTIC, prevê como contrapartida a concessão de benefícios por resultado, caracterizados como sendo: o recebimento de recursos orçamentários adicionais, consignados pelo Ministério da Educação, e a concessão preferencial de bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes.

– Para atingirem os resultados em cada eixo do programa, as universidades e os institutos federais poderão celebrar contratos e convênios diretamente com fundações de apoio, devidamente credenciadas, nos termos do disposto na Lei nº 8.958, de 1994.

– Verbaliza que as fundações de apoio poderão contratar, por prazo determinado, pesquisadores e professores estrangeiros para atuar em projetos e programas de ensino, pesquisa e extensão internacionais do Future-se, sob o regime da CLT.

– Dispõe que os fundos patrimoniais (Lei 13.800/2019) podem apoiar as ações do Future-se, sem prejuízo da existência de outros fundos patrimoniais específicos para universidades e institutos federais.

– Estabelece que os contratos de resultado somente poderão ser celebrados após a edição de portaria conjunta do Ministério da Economia e do Ministério da Educação, a qual indicará a existência de dotação orçamentária, estimará o impacto orçamentário e financeiro e atestará a compatibilidade do programa com a Lei de Responsabilidade Fiscal, com a Lei de Diretrizes Orçamentárias vigente e com as normas de direito financeiro e orçamentário aplicáveis.

– Prevê o aperfeiçoamento da gestão patrimonial de universidades e institutos federais, por meio de cessão de uso, concessão, comodato, fundos de investimentos imobiliários, entre outros mecanismos.

– Não prevê mais a possibilidade de celebração de contratos de gestão entre instituições federais de ensino e organizações sociais para a consecução dos resultados esperados em cada eixo do programa.

A nova versão do Future-se reafirma o descompromisso do governo Bolsonaro com a autonomia e com o financiamento público das instituições federais de ensino. Apesar do esforço empreendido pelo MEC na tentativa de maquiar a versão original e de dissimular os verdadeiros objetivos do programa, resta nítido que o pressuposto permanece intacto: reduzir progressivamente o financiamento público das instituições federais de ensino e condicionar a liberação de recursos ao cumprimento de metas estabelecidas pelo MEC, em detrimento da autonomia consagrada no texto constitucional.

Embora a adesão ao programa não esteja mais condicionada à celebração de “contratos de gestão” entre o Ministério da Educação, as instituições federais de ensino e as organizações sociais, agora a adesão ao programa está condicionada à celebração de “contratos de resultado” entre o Ministério da Educação e as instituições federais de ensino, cabendo ao MEC e ao MCTIC estabelecerem os indicadores que deverão ser perseguidos pelas universidades e institutos federais de educação, a fim de que as instituições possam perceber os chamados benefícios por resultado.

O “contrato de resultado”, na prática um “contrato de gestão”, é o instrumento através do qual o Ministério da Educação pretende minar a autonomia das instituições federais de ensino e condicionar a liberação de recursos.

Os indicadores que virão a ser estabelecidos podem contemplar todas as diretrizes previstas na versão original do Future-se, inclusive diretrizes de governança e de gestão da política de pessoal, que englobam a “estrita observância dos limites de gasto com pessoal” e a contratação de servidores docentes e técnico-administrativos em regime celetista, via organizações sociais.

A redução progressiva do orçamento do Ministério da Educação está sendo explorada como um instrumento coercitivo, uma vez que a manutenção das instituições federais de ensino está permanentemente ameaçada e que o governo Bolsonaro tenta vender o programa como a única alternativa possível para evitar o colapso das universidades e institutos federais de educação.

O PL chega ao cúmulo de verbalizar que as instituições participantes do programa serão beneficiadas com o recebimento de recursos orçamentários adicionais, consignados pelo Ministério da Educação, e com a concessão preferencial de bolsas da Capes, o que se revela uma chantagem explícita e inadmissível, característica do modo bolsonarista de governar.

No momento em que celebramos a perda de eficácia da MP 914/19, uma vez que representava uma intervenção autoritária do governo Bolsonaro nos processos de escolha dos dirigentes das instituições federais de ensino, devemos recordar que o Future-se também é um projeto de intervenção autoritária, que fragiliza sobremaneira a autonomia das universidades e institutos federais de educação.

O governo Bolsonaro tem um pacote completo de destruição da educação pública, da creche à pós-graduação, que engloba o fim do Fundeb, o Plano Mais Brasil, o Future-se, a Educação Domiciliar, a expansão irrefletida da Educação a Distância, a militarização da educação básica, a política de vouchers, dentre outras propostas que têm como norte a precarização e privatização. Faz-se imperativo retomar a mobilização social, dentro e fora das redes sociais, em defesa de uma educação pública, gratuita, laica, democrática, não militarizada e de qualidade.

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