A tempestade perfeita vai se formando no horizonte do Brasil e tudo que o ministro da Economia, Paulo Guedes, faz é continuar vendendo ilusões. Cada uma delas se desfaz ao menor contato com a realidade, mas ele persiste. Frustrado não pelo número de cidadãos que a cada mês são jogados na pobreza, mas por não ter entregue nenhuma empresa estatal na bacia das almas aos amigos do mercado financeiro, disse na última sexta-feira (13) que o país está oficialmente saindo da recessão.
Segundo o ministro, sinais da “retomada” podem ser vistos no mercado de trabalho, embora o ritmo de “crescimento do emprego” observado nos últimos três meses não deva continuar. “O ritmo está tão forte que talvez seja difícil manter”, comemorou, em evento virtual promovido pela Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
Guedes se apoia, como sempre, nos dados positivos do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), produzido pelo ministério que comanda, e que mede apenas o emprego formal. O otimismo não é o mesmo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), muito mais amplos por englobarem o mercado informal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do instituto aponta que a desocupação no trimestre até agosto já era de 14,4%.
A redução pela metade do auxílio emergencial, iniciativa dos partidos de oposição no Congresso que promoveu uma queda das taxas de pobreza a níveis históricos em agosto, agora fará o dado seguir trajetória contrária. O índice já avançou de 18,4% para 19,4% da população, o equivalente a 41,1 milhões de pessoas vivendo com renda inferior a US$ 5,50 ao dia, linha de corte adotada pelo Banco Mundial.
Segundo cálculos do economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/ FGV), a reversão começou instantaneamente em setembro, quando o auxílio passou a ser de R$ 300 e o governo adotou várias regras de exclusão de beneficiários.
Os pesquisadores da instituição avaliaram que o total de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza havia passado de 50 milhões em maio para 38,9 milhões em agosto, quando ainda vigoravam os efeitos do auxílio emergencial de R$ 600. E o número de pessoas com rendimento inferior a US$ 1,90 por dia, a linha da pobreza extrema, recuou de 8,8 milhões em maio para 4,8 milhões em agosto.
No fim de setembro, o instituto projetou que 11 milhões voltarão à pobreza apenas em razão da redução do valor do benefício. Quando o governo o extinguir, em 31 de dezembro, o quadro se deteriorará ainda mais. Os estudos são realizados com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o mesmo que vem contrapondo com estatística o discurso ufanista de Guedes e seu chefe, Jair Bolsonaro.
Os dois entraram em cena no fim da semana fazendo o repetitivo jogo do afirma-nega em relação ao auxílio. Guedes acenou na quinta com a possibilidade de extensão do benefício em caso de uma segunda onda de contágio galopante de Covid-19. Ao que Bolsonaro respondeu na sexta, afirmando que a tese da segunda onda é “conversinha”.
O auxílio emergencial de R$ 600 foi aprovado pelo Congresso Nacional após articulação de parlamentares, notadamente da oposição, para aumentar o valor de R$ 200 proposto por Guedes e Bolsonaro. Oportunista, o presidente viu que o benefício lhe dava popularidade e surfou na onda. Mesmo assim, optou pela redução para R$ 300, sob a alegação de que o programa é caro.
A Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev) analisou mais de 148 milhões de CPFs, e quase 70 milhões de pessoas foram consideradas elegíveis a receber o benefício. Ele alcançou, em julho, 50,7% das famílias do país, segundo dados do IBGE.
Naquele mês, 107,11 milhões de pessoas moravam em domicílios com pelo menos uma pessoa recebendo a transferência de renda. Entre os 10% mais pobres, o auxílio chegou a 86,6% dos brasileiros, e no Norte e no Nordeste cerca de 60% dos domicílios o recebiam.
Pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) com o Instituto MDA, divulgada na semana passada, apontou 72% dos entrevistados defendendo a prorrogação do benefício por mais alguns meses a partir de janeiro de 2021.
“É impressionante como o governo não conseguiu pautar ainda esse debate (a alternativa ao fim do auxílio)”, disse o consultor do Senado Pedro Fernando Nery ao ‘Estado de São Paulo’. Para ele, hoje há um “abismo” separando os dias 31 de dezembro e 1.º de janeiro de 2021, e está contratada alta da pobreza, do desemprego e da desigualdade. “Alguma coisa terá de ser feita. Não consigo pensar num assunto mais urgente.”