A crise deflagrada por policiais amotinados no Estado do Ceará joga luz sobre problemas que são estruturais. Durante a paralisação, que durou 13 dias, policiais militares cruzaram os braços, ocuparam quartéis e obrigaram o comércio a fechar as portas.
O movimento levou pânico à população de várias cidades do Ceará. Houve 241 mortes no período e a greve chegou ao fim com uma negociação, em que o governo do Estado se compromete a promover reajuste salarial, mas não anistiou os grevistas.
As entidades da sociedade civil organizada em torno da pauta da segurança pública denunciam e demonstram, há muitos anos, com base em dados de sérias pesquisas, os graves problemas de nossas polícias, que contribuem para torná-las das mais violentas e letais do mundo.
As condições de trabalho são ruins, o salário é baixo e a estrutura é anacrônica. Fora isso, é preciso compreender a formação policial e o modelo adotado no Brasil. As duas policias “comuns” no Brasil – entendendo que a Policia Federal merece um debate à parte – compõem duas metades de uma atividade que é única.
Uma faz o enfrentamento nas ruas (Polícia Militar) e a outra investiga (Polícia Civil), o que resulta em baixíssima solução de crimes graves. A média nacional de solução de homicídios não alcança 10%.
Parte do motivo é justamente essa divisão do ciclo, que alimenta a perseverante hostilidade entre as duas polícias que, como regra, não dividem informações, não compartilham recursos e acirram infinitas disputas de protagonismo.
Importante consignar que nosso formato é único no mundo. Nos demais países cada polícia atua desde os serviços de patrulhamento até as tarefas de investigação. É o chamado ciclo completo de policiamento.
Fora isso, temos o modelo de hierarquia interna, também único no mundo, dentro de cada instituição, que no caso da Polícia Civil ocorre entre delegados e não-delegados e na Polícia Militar, entre oficiais e não-oficiais, tudo com enorme desigualdade de status e de salários.
A controvertida relação federativa e entre órgãos de Estado da área, como polícia e Ministério Público, com disputas e confusão de atribuições decorrentes de um parágrafo 7º, do artigo 144-A, da Constituição Federal, nunca regulamentado, também é outro gargalo. A discussão sobre poderes investigativos é intensa.
O ex-senador Lingbergh Farias apresentou, em 2013, a Proposta de Emenda à Constituição nº 51, que permitiria que Estados e Municípios fossem protagonistas na definição de suas polícias, estabelecendo o ciclo completo da investigação e uma carreira única.
Houve debates muito relevantes ao tempo, mas a proposta não andou. Criou-se um falso discurso de unificação de polícias, fim da polícia militar, desvalorização das carreiras. E o mérito do projeto foi engolido pelo corporativismo e falsa propaganda.
Milícias
Em outra ponta, não há como evitar afirmar que corporações policiais possuem vários de seus quadros envolvidos em corrupção e violência. Muitos enveredam pelas organizações paramilitares conhecidas como milícias, que ganharam evidência e centralidade no debate político nos últimos anos, em virtude do envolvimento de milicianos com o clã Bolsonaro.
As milícias não são um fenômeno novo. Estudiosos como o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da UFRRJ, que trabalha o tema há 26 anos, apontam que elas surgiram como grupos de extermínio no final dos anos 1960, em plena ditadura militar, compostos por policiais militares e outros agentes de segurança que atuavam como matadores de aluguel.
Ou seja, surgiram junto com a Polícia Militar como existe hoje, treinada para a guerra, não para proteger cidadãos.Nos anos 90 e 2000, as milícias estavam diretamente ligadas à questão da ocupação urbana de terras.
Poder paralelo
No Rio de Janeiro atuavam na Baixada Fluminense, em áreas onde antes havia a presença do tráfico, entrando em confronto com ele, estabelecendo uma estrutura de poder, cobrando taxas, vendendo serviços e bens.
Oferecem segurança e proteção, controlam a distribuição de água, de gás, bebidas, envolvendo-se com diversas atividades ilícitas. E executam sumariamente quem diverge ou atrapalha seus negócios. É um poder paralelo. E em determinados locais fazem acordo com o tráfico, assim como a polícia faz.
Também elegem representantes na estrutura do Estado, coisa que o tráfico não faz. Adotam todas as práticas de ilicitudes, operando em territórios determinados por disputas, onde a sociedade assiste, impotente e submissa.
Para saber da dimensão onde se separam e onde convergem polícia e milícia, é preciso estudar caso a caso. Milicianos estão em todo lugar nas estruturas do Estado, sobretudo nas polícias.
De todo modo, o que se apresenta com razoável claridade, por agora, é que há uma ação orquestrada que visa expandir a ação da polícia e usá-la no sentido de desestabilizar governos que não se alinham com o poder central.
Motim no Ceará
O caso do Ceará é emblemático. A dimensão da política se impõe como a forma de perpetuar e consolidar a ação, tanto da polícia que mata e quer impunidade, quanto da milícia.
O país em que policiais militares viram heróis da nação ao fazer greve e atirar em senador da República e são chamados de “gigantes, corajosos” pelo chefe da Força Nacional, é o mesmo em que as patentes fazem parte nos nomes que acompanham bancadas inteiras no Congresso Nacional, e em que ex-militar, homenageado por deputado, filho do Presidente da República e a pedido dele, é morto pela Polícia Militar em um sítio de um vereador do PSL, o mesmo partido que elegeu o presidente, seus filhos, os parlamentares das patentes…
Estamos em um cerco, onde não há coincidências, mas fatos, que precisam ser investigados e esclarecidos. Há uma operação por dentro da estrutura oficial política, extremamente perigosa, com tentáculos que provavelmente apenas desconfiamos onde alcançam.