Desde 2003, a legislação brasileira estabelece que o currículo oficial da rede de ensino deve contemplar a história e a cultura Afro-Brasileira. A Lei 10.639/03 foi a primeira assinada pelo presidente Lula, logo após a posse para seu primeiro mandato, expressando o compromisso do governo petista com as políticas de combate ao racismo — em marco desse mesmo ano, seria criada a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com status de ministério.
A presença da história e da cultura de matriz africana nos currículos escolares era uma reivindicação antiga do Movimento Negro no Brasil. Passados quase 12 anos da vigência da lei, há avanços a comemorar, mas ainda restam muitos desafios a ser vencidos para a conquista de uma escola verdadeiramente inclusiva, que cumpra seu papel na promoção da igualdade racial e na formação de uma sociedade sem racismo. A avaliação é da educadora e pesquisadora Ana Luiza Basílio, do Centro de Referências em Educação Integral, em artigo reproduzido nesta terça-feira (9) pelo blog do jornalista Luís Nassif. Veja a íntegra do texto:
Especialistas refletem sobre cenário pós-aprovação da Lei 10.639
É de 2003 a Lei 10.639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para incorporar no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Passados os primeiros 10 anos, a sua total implementação ainda esbarra em baixa institucionalização da normativa nas políticas públicas educacionais, valendo-se, na maioria das vezes, da iniciativa de professores ativistas do movimento negro e de outros grupos sociais.
De maneira geral, embora louváveis, as tentativas para cumpri-la acabam por gerar práticas descontínuas ou pouco articuladas ao currículo, formação de professores, produção de livros didáticos e materiais. Há também falta de financiamento e apoio institucional.
A reflexão, que também compõe a discussão de educação integral, foi pano de fundo para o Seminário “10 anos das Diretrizes Curriculares Nacionais da Lei nº 10.639/2003: balanço e novos parâmetros de exigibilidade” realizado no último sábado, 29 de novembro, pela Ação Educativa, em São Paulo.
Para o professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Valter Roberto Silvério, o movimento negro acumula conquistas importantes quanto aos marcos legais – caso do Plano Nacional de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais que procurou estabelecer metas e estratégias para ampla adoção da Lei 10.639, além de outras disposições. Portanto, entende que a questão é fazer com que as entidades e organizações passem a usar os instrumentos disponíveis para direcionar a luta para outro plano.A diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT), Cida Bento, reconheceu boas práticas para implementação da Lei – inclusive listou 74 delas reconhecidas pelo Prêmio Educar para a Igualdade Racial, do qual a instituição é integrante -, mas entende que esforços são necessários. “O movimento negro tem acúmulo de conhecimento na área, mas ainda continua fora das instâncias de concepção, execução e monitoramento das políticas”, enfatizou. Para ela, é fundamental que haja uma avaliação dos dez anos iniciais da Lei buscando entender se os recursos aplicados dialogaram com as necessidades dos negros. “Como vamos estar presentes nas políticas de igualdade racial sem reproduzir as hierarquias raciais?”, problematizou.
No caso das escolas, ele avalia que o principal enfrentamento é contra o que chama de “miopia na gestão escolar para a equidade”. “De maneira geral, os professores‘compraram’ a ideia de tratar do tema da igualdade racial. O grande problema desse campo normativo é a gestão, sempre preocupada em controlar, regular a expansão do campo da discussão étnica no Brasil”, colocou.
A seu ver, no campo macropolítico a questão torna-se ainda mais complicada por esbarrar em disputas por uma agenda. “Hoje o que vemos é uma reação às exigências do movimento negro, como nos programas Esquenta e Sexo e as Negas, ambos da Rede Globo, a partir da caricatura do que é o negro no Brasil. A função única é de nos esculhambar socialmente, que é o que a elite branca que está na política quer fazer conosco”, condenou.
O educador ainda apontou um terceiro problema que é o de significar a discussão em uma agenda que atravessa todos os temas no país. “A educação é um dos temas centrais, mas não o único. Precisamos ampliar o olhar para que as reflexões não se direcionem apenas para o campo educativo”. Para Silvério, as diretrizes de diálogo com a cultura afro-brasileira e africana pedem resoluções na formação de professores e nos cursos de aperfeiçoamento e qualificação. Sua defesa é que a construção dessa educação anti racista deve se construir com base no sistema educacional, garantindo que a diversidade – como a cultura afro-brasileira e indígena – esteja contemplada em um currículo permanente e comprometido com a comunidade.
Para a coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira, ainda figuram como obstáculos as próprias condições de trabalho dos profissionais de educação, muito por conta de financiamento inadequado; as avaliações em larga escala, centrada em resultados; e não clareza quanto a uma gestão democrática e participativa que viabilize a diversidade nos espaços públicos. Em sua análise, é preciso reconhecimento da agenda de educação e relações raciais, do protagonismo do movimento negro, e evitar possíveis armadilhas para com a temática que podem acabar por restringir as necessidades do movimento, e manter o universal protegido em sua “branquitude patriarcal heteronormativa”.
E reforça: “o que está em disputa é um projeto de sociedade. Temos a missão de criar espaços de diálogo para os embates, inquietações, mas também olhar para os pontos igualitários entre as agendas para que haja um fortalecimento político”.