Pierobom: a violência corrói a legitimidade de toda a atuação da polícia. É uma ilusão achar que ela pode ser segregada às periferias Em 1997, uma pesquisa do Ibope apurou que 70% dos brasileiros não confiavam “nem um pouco” e 92% temiam que um policial fizesse mal a seus parentes. Em 2012, um levantamento do Ipea constatou que 53,5% dos brasileiros consideravam que os policiais no Brasil não respeitam os direitos dos cidadãos, 63% consideravam que os policiais tratavam as pessoas com preconceito e discriminação e 12% dos entrevistados afirmaram que já haviam sofrido truculência durante um atendimento policial, como xingamentos ou agressões.
“Temos um problema sério em relação à atuação policial”, resume Thiago Pierobom, promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), um dos expositores da audiência pública desta segunda-feira (17) da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que apura os assassinatos de jovens no Brasil. Pierobom e o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro Ibis Silva Pereira debateram as origens e as possíveis soluções para a violência policial no Brasil.
PEC 51 é um bom começo
O promotor defendeu uma mudança profunda na política de segurança pública, com a superação da ideia de “guerra”, redirecionando o enfoque para a prevenção, para o policiamento comunitário e para a superação da exclusão social. Ele elogiou a Proposta de emenda à Constituição (PEC 51)de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que trata da desmilitarização e reestruturação das polícias. “Li o texto e achei fantástico! Porque esse é o caminho! Criar ciclos completos de investigação; investir no fortalecimento dos órgãos de controle externo, com poderes de investigação”, aspecto que ele aponta como essencial.
“Em qualquer lugar do mundo, órgão de controle interno tem que investigar. Se queremos abrir a caixa preta do problema é importante que esse órgão do controle externo esteja fora da instituição policial”, afirma Pierobom, que considera um equívoco contar apenas com as corregedorias dos órgãos, sujeitas a pressões e ao corporativismo. “Os vínculos psicológicos de lealdade existem em todas as instituições”. “Enquanto membro do Ministério Público, considero que a PEC 51 seria um bom caminho para se avançar nessa rediscussão das políticas de segurança pública”.
“Não existe democracia no mundo que exista sem uma polícia forte, reconhecida, bem equipada, valorizada”, ressaltou o promotor. “Ninguém aqui não gosta da polícia”. A crítica ao policial, ressaltou ele, não exclui o reconhecimento e valorização dos profissionais que, muitas vezes, arriscam suas vidas em nome da segurança. “Mas, infelizmente, a história brasileira é recheada de incidentes de graves violações de direitos humanos relacionadas à atuação policial”. Não sem razão, a Anistia Nacional estabelece que, hoje, uma das mais sérias violações aos direitos humanos no Brasil está relacionada com o padrão violento, truculento de relacionamento da polícia com a sociedade civil, destacou o promotor.
Violência policial
Pierobon lembrou o massacre da Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, em 1992 (111 presos mortos), as chacinas da Candelária (oito jovens mortos, seis eram menores de idade) e de Vigário Geral (36 homens de um grupo de extermínio mataram 21 moradores da favela), ambas no Rio de Janeiro, em 1993, Eldorado dos Carajás (a PM matou 17 trabalhadores sem terra acampados na localidade, no Sul do Pará) e outros episódios de grande repercussão.
Um relatório da Polícia Civil de São Paulo indica que, no período de 2006 a 2010, cerca de 150 homicídios na capital paulista foram praticados com o envolvimento de policiais militares em grupos de extermínio. Em Goiás, o número de “desaparecidos” é maior na democracia do que a quantidade de pessoas que desapareceram durante a época da ditadura militar. E nem sempre a vítima da violência são os moradores negros e pobres da periferia, mas agentes públicos empenhados em estancar o genocídio. Como a juíza Patrícia Acioli, assassinada em Niterói em 2011 enquanto trabalhava na investigação de um grupo de extermínio integrado por policiais. No mesmo ano, a juíza Fabíola Moura, de Pernambuco, sofreu um atentado praticado, presumidamente, por policiais militares ligados a um grupo de extermínio.
O problema está na estrutura
Pierobom alerta que as irregularidades e crimes praticados por policiais não decorrem de desvios individuais. “Violência e corrupção policial não são problemas de indivíduos isolados que que se desviam do padrão. Os mecanismos de controle nos quais esses policiais estão inseridos acabam, em certa medida, fomentando, dando espaço para que ocorram esses episódios de desvio na atuação policial”.
Sobre o claro viés racial presente na violência policial, Pierobom enfatiza que é preciso reconhecer—e trabalhar para superar—características que marcam a sociedade brasileira. “Somos um país machista, racista, elitista, adultocêntrico, sem falar de outras formas inúmeras de discriminação, como a homofobia”. Não podemos ter a ilusão de que policiais não vão ter a mesma tendência de raciocinar como todas as outras pessoas da sociedade, porque policiais não vieram de Marte. Eles refletem esses valores”, pondera o promotor.
O papel do Ministério Público
Thiago Pierobom considera que o Ministério Público, que tem a responsabilidade constitucional de zelar para que todos os órgãos públicos e a sociedade civil respeitem os direitos previstos na Constituição, precisaria avançar mais na fiscalização das políticas de segurança pública.
O MP também tem a atribuição constitucional de exercer o controle externo da atividade policial, função que tem avançado, principalmente nos estados que criaram estruturas especializadas para isso. O Distrito Federal foi a unidade pioneira no Brasil de criação de uma unidade especializada, com membros em dedicação exclusiva apenas para pensar a temática de controle externo da atividade policial e para realizar a investigação de crimes praticados por policiais.
Autos de resistência
Há uma diretriz para que todos os Ministérios Públicos criem órgãos especializados para exercer o controle externo da atividade policial e para investigar ou acompanhar a investigação de crimes praticados por policiais, especificamente as mortes decorrentes da intervenção policial. Tramita atualmente no Conselho Nacional do Ministério Público uma resolução que procura criar a obrigação de que todos os MPs criem procedimentos para fiscalização e acompanhamento das hipóteses de morte decorrente da intervenção policial. Na prática, seria a abolição dos chamados autos de resistência (mortes decorrentes de suposta resistência à ação policial e que, portanto, são tratadas como “legítima defesa”), na avaliação de Pierobom.
O promotor defende que sejam criados protocolos e rotinas de intervenção do MP que garantam a investigação isenta e imparcial desses episódios. Ele ressalta a dificuldade e a complexidade de se investigar um crime praticado por policial, já que geralmente as testemunhas são outros policiais envolvidos naquela diligência, ou uma vítima sobrevivente, geralmente alguém com algum envolvimento em ilícitos—“Alguém que vai ter a sua palavra diminuída”—, ou pessoas que tendem a não colaborar, para não entrar em rota de colisão com um policial. Some-se a isso o sucateamento dos institutos de perícia e uma tendência apontada por Pierobom em todas as instâncias de controle, inclusive no MP: “Há uma tendência natural de minimização dos desvios praticados por policiais.
Indiferença da classe média
Outro fator que precisa ser enfrentado—e que exige uma reflexão de cada cidadão—é a relativização da violência, a seletividade do choque e da repulsa diante de atos violentos cometidos pela polícia. Se a vítima tem algum envolvimento com ilícitos, a tendência é achar que “a polícia fez o trabalho dela”. O promotor, porém, alerta que não é possível segregar a violência às “zonas de barbárie” —a periferia, as favelas, as áreas de exclusão social. “É uma ilusão a casse média acreditar que pode conviver com uma polícia acostumada a matar as pessoas, porque, em algum momento, essa violência da polícia vai tocar na classe média”.
Pierobom enfatiza que a violência policial é “um câncer que corrói as bases da legitimidade de toda a atuação da polícia”. Compactuar com a noção de que “direitos humanos são para os humanos direitos” é uma armadilha, já que não é possível que uma polícia violenta vá ser “civilizada” fora das áreas onde vivem os excluídos.
Cyntia Campos