Em recente relatório, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima em 50 milhões o número de seres humanos vítimas da escravidão moderna. São pessoas – uma a cada 150 – obrigadas a trabalhar sem direitos ou que foram forçadas a casar. É uma chaga mundial que só cresce, admite a Organização das Nações Unidas (ONU).
Entre as causas do agravamento desse quadro estão a pandemia e a migração provocada pelas guerras e pelas mudanças climáticas. A exploração não se dá ao acaso. Ela gera um lucro nas cadeias produtivas que pode chegar a US$ 180 bilhões ao ano. E o apelo da ONU é para que governos e sociedade civil se juntem para combater a tragédia.
No Brasil já foram resgatadas mais de 57 mil pessoas desde 1995, ano em que o país reconheceu a existência de escravidão moderna. Mas foi a partir do governo Lula, em 2003, que esse trabalho assumiu proporções que trouxeram reconhecimento mundial.
Combate histórico
O Dossiê sobre Escravidão Contemporânea, dos pesquisadores Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado e Rafael Franca Palmeira, atesta em números que nunca se combateu tanto o trabalho escravo no país quanto nos governos Lula. Para se ter uma ideia, durante os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o número de unidades produtivas fiscalizadas foi de 731, com a libertação de 4.106 pessoas, enquanto nos oito anos de Lula foram 2.028 estabelecimentos, resultando em 33.287 trabalhadores e trabalhadoras libertadas de situação análoga à escravidão. Os malfeitores também sentiram mais no bolso com o governo Lula: antes dele, as multas impostas somavam uma média de R$ 851,11 por vítima. Já entre 2003 e 2010, esse valor médio subiu para R$ 1.764,00.
“De fato, no governo Lula o problema foi tratado com muito mais seriedade do que no governo anterior e as equipes móveis do Ministério do Trabalho viram seus meios aumentarem. Ao mesmo tempo, diversas ações foram implementadas pela sociedade civil e pelo Estado, enquanto a mídia também passou a se interessar pelas diversas situações denunciadas” – sustenta o estudo, publicado na revista francesa Brésil(s).
Uma das molas que impulsionaram a fiscalização foi a criação, na largada do governo Lula, em 2003, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Dois meses depois, foi lançado um plano nacional para o setor, e, em seguida, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que veio para apoiar as ações do Plano Nacional, coordenar cooperação técnica com organismos nacionais e internacionais e acompanhar o andamento de projetos da área no Congresso.
Tanta confluência resultou numa cooperação ampliada, refletida na criação de comissões estaduais para cuidar do tema e, ainda, na multiplicação de artigos publicados. Coleta feita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que em 2001 houve 77 artigos acadêmicos sobre escravidão moderna; já em 2004, foram 1.518.
Outro avanço foi a criação, também em 2003, da lista suja do trabalho escravo, que é o cadastro de empregadores – empresas e pessoas – que praticam escravidão. Essa lista, publicada no site do Ministério do Trabalho, foi feita para impedir que os cadastrados acessem financiamentos e contratos públicos. Essas ações resultaram na criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, documento com 10 compromissos aos quais aderiram grandes grupos privados do país.
A luta no Congresso
Antes mesmo de o partido assumir a Presidência da República, a bancada do PT no Congresso encabeçava esse combate. Em 1995, o então deputado Paulo Rocha (PT-PA) apresentou projeto, transformado em lei (Lei 9777/1998) três anos depois, que mudou o Código Penal para definir o crime de trabalho forçado e escravo. Também é de Paulo Rocha o projeto (PLS 237/2016), aprovado no Senado, que prevê pena de até quatro anos a quem explorar trabalho infantil. Estima-se que quase um milhão de crianças estejam nessas condições no país, com base nos números da pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD).
Mas um dos passos mais difíceis – e mais comemorados – foi a aprovação da emenda constitucional (EC 81) que permite a expropriação, sem indenização, de propriedades onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo. O texto, também de iniciativa de Paulo Rocha, destina essas terras expropriadas para reforma agrária e programas de habitação popular.
“Esta é uma das emendas constitucionais mais importantes no combate ao trabalho escravo. Visa inibir a tentativa de exploração da mão de obra no país. Especialmente na região Norte, onde há registros de um quarto destes casos absurdos. Precisamos urgentemente regulamentar esta emenda e garantir uma punição severa a quem se atreve a adotar tal prática”, defende Paulo Rocha, atual líder do PT no Senado, lembrando outro degrau que precisa ser alcançado.
Desmonte e flexibilização
A regulamentação da emenda, que vai definir os limites do trabalho escravo na lei, ficará para o próximo governo. O próprio Bolsonaro afirmou que não moveria uma palha nesse sentido. Ao contrário, defendeu que a mudança na Constituição fosse revista, para, segundo ele, proteger a propriedade privada. A pressão do Congresso, da sociedade e até de compradores internacionais evitou que seu governo fosse adiante nessa ideia.
Mas não freou o retrocesso. Uma portaria publicada (926/2020) pelo Ministério do Desenvolvimento Regional tirou poder da lista suja do trabalho escravo. No lugar dela, o governo passou a usar como critério para proibir empréstimos oficiais a condenação judicial do empresário e não os flagrantes registrados pelos fiscais do trabalho.
O arrocho orçamentário e o desmonte de órgãos públicos também foram utilizados para minar o trabalho de fiscalização do trabalho escravo nos últimos anos. Além disso, o atual governo aprofundou a reforma trabalhista aprovada no governo de Temer, o que, para o Ministério Público do Trabalho (MPT), contribuiu para aumentar o número de casos de escravidão moderna e reduzir o número de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), que são acordos firmados com o MPT para resolver violação de direitos coletivos.
“Infelizmente, tivemos nos últimos quatro anos um presidente da República que deu carta branca para exploradores da escravidão não serem intimidados. Vimos isso, por exemplo, quando o país chegou a reduzir drasticamente nos últimos anos as ações para libertar pessoas em condições análogas à de escravo. Temos uma grande expectativa de que este quadro maléfico seja alterado assim que o Brasil tiver novamente um governo popular”, projetou Paulo Rocha.