ARTIGO

Que soberania?

Alguns, como pode ser o caso do general, que não duvidamos ser um patriota honrado, aparentemente não entendem que a soberania nacional está estreitamente vinculada, numa democracia, à soberania popular
Que soberania?

Foto: Ricardo Stuckert

Numa entrevista muito grave, que só piora o grau de exacerbação política do Brasil, o Comandante do Exército, General Villas Bôas, advertiu o país que uma eventual candidatura de Lula configuraria “o pior cenário”, pois teríamos “alguém sub judice, afrontando tanto a Constituição quanto a Lei da Ficha Limpa, tirando a legitimidade, dificultando a estabilidade e a governabilidade do futuro governo e dividindo ainda mais a sociedade brasileira”.

O general ainda afirmou que a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU sobre tal candidatura é “uma tentativa de invasão da soberania nacional. Depende de nós permitir que ela se confirme ou não. Isso é algo que nos preocupa, porque pode comprometer nossa estabilidade, as condições de governabilidade e de legitimidade do próximo governo”.

O recado é claro: as Forças Armadas, segundo o general, não permitirão a candidatura de Lula, que ainda está sub judice, e o STF tem de dar a palavra final de veto, sob pena de um eventual novo governo do PT não ter “governabilidade”.

A fala é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque o artigo 142, § 3, inciso V, da CF, determina que o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos. Assim, os militares da ativa, conforme mandamento constitucional, devem evitar atitudes e declarações que os identifiquem com forças políticas específicas. Ora, vetar ou condenar candidatura de quem quer que seja, parece violação desse mandamento constitucional. Não cabe aos militares a tutela do processo político e das decisões judiciais. Julgávamos que esse tempo estava extinto.

Em segundo, porque o general deu a entrevista em razão da preocupação com o atentado contra Jair Bolsonaro, que conturba o cenário político. Contudo, não nos recordamos de declarações do mesmo teor quando, por exemplo, a Caravana de Lula foi alvo de tiros. Nesse caso, muitos assumiram tal atentado como algo natural. Outros chegaram ao cúmulo de considerar o atentado como algo desejável, algo comum como “levantar o relho” contra “desordeiros”. Agora mesmo, no Paraná, um militante do PT foi alvejado com balas de borracha e hospitalizado pelo “crime” de estar fazendo panfletagem. Silêncio sepulcral. Afinal, a violência jurídica, política e física contra petistas e esquerdistas já foi naturalizada pelo golpe.

Entretanto, o que mais chama a atenção nas declarações do general é a sua afirmação de que a decisão do Comitê de Direitos Humanos favorável à candidatura de Lula é uma “invasão da soberania nacional”. O general parece desconhecer que a adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e ao seu Protocolo Facultativo, pelo a qual o país se submeteu voluntariamente às decisões do Comitê, foram atos soberanos no plano internacional. Ninguém invadiu nada. O Brasil, em ato de soberania exercido no plano mundial, deu permissão para que o Comitê julgasse eventuais violações de direitos humanos ocorridas em território nacional. O Brasil convidou o Comitê a exercer tal função. O Comitê não invadiu a soberania nacional.

Tal declaração resulta um tanto paradoxal num momento em que o golpe varre a soberania nacional em todos os planos.

Resulta difícil entender porque essa preocupação com a decisão do Comitê e não com fatos aberrantes que atentam, de fato, contra a soberania nacional. Assim, salvo engano, não nos lembramos de declarações do general contra a venda da Embraer à Boeing, que vai destruir a nossa estratégica indústria aeronáutica, contra a venda criminosa do pré-sal e dos ativos estratégicos da Petrobras, contra a anunciada venda de terras e jazidas minerais a estrangeiros, contra a venda da Eletrobrás, que ameaça a nossa segurança energética, contra a Emenda Constitucional nº 95, que vai reduzir substancialmente os investimentos nos projetos estratégicos da Defesa Nacional, contra a ingerência dos EUA na operação Lava Jato, que submete parte do Judiciário a desígnios estrangeiros, contra a renegociação do Acordo de Alcântara, que tende a colocar o programa espacial brasileiro na órbita dos interesses norte-americanos, contra o célere apequenamento do Brasil provocado pela política externa passiva e submissa praticada pelo governo do golpe etc.

A lista das verdadeiras invasões da soberania nacional promovidas pelo governo golpista é enorme. E o silêncio sobre tais invasões reais é, no mínimo, curioso. Assim como foi curioso o convite às Forças Armadas dos EUA de participar de operações militares na Amazônia, algo impensável há pouco tempo.

Alguns, como pode ser o caso do general, que não duvidamos ser um patriota honrado, aparentemente não entendem que a soberania nacional está estreitamente vinculada, numa democracia, à soberania popular.

O Brasil só será soberano se seu governo estiver solidamente calcado na soberania popular exercida pelo voto. Ora, todos sabem muito bem que a maioria do povo brasileiro quer que Lula seja candidato. Quer nele votar. Tornou-se voz corrente, no Brasil e no mundo, que Lula foi condenado injustamente, sem a exibição de provas concretas. A soberania popular, erodida pelo golpe, vem sendo mutilada num processo eleitoral fraudado. A soberania popular foi invadida.

E quem invade a soberania popular invade também a soberania nacional.

Portanto, a situação real é oposta à descrita pelo general. Qualquer governo que não seja o de Lula, o candidato preferido do povo, ou governo por ele apoiado, não estará calcado na soberania popular e, por conseguinte, não terá legitimidade e governabilidade para promover a soberania nacional.

O resto será agressão à soberania popular e invasão da soberania do Brasil.

 

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