O Baile da Ilha Fiscal é um acontecimento da história brasileira. Foi a última grande festa da monarquia, antes da Proclamação da República, em novembro de 1889. A comemoração que contou com milhares de convidados, segundo registros, ocorreu alheia à eminente queda do regime, que seria sacramentada seis dias depois. Mais recentemente, o cinema norte-americano retratou um acontecimento semelhante. No premiado filme Titanic, assistimos a uma banda que segue tocando diante do caos de um grande navio afundando, sem que houvesse socorro a todos os passageiros.
Podem parecer acontecimentos muito distantes, mas, em tempos distópicos, essas referências se mostram atuais. Em que pese não estarmos passando por uma queda de regime nem por um naufrágio (não literalmente), vivemos hoje as dramáticas consequências da pandemia. E, enquanto isso, temos um presidente que nega a ciência, debocha da doença, promove aglomerações, desrespeita medidas sanitárias, receita medicações sem eficácia, despreza vacinas e, numa prova de que tudo que é ruim pode piorar, coloca o Brasil à disposição de um torneio internacional de futebol.
A Copa América – que, nas redes, rapidamente, virou Cepa América ou Cova América – foi recusada por Colômbia e Argentina. Essa última desistiu de sediar a competição devido ao avanço da Covid-19 no país. Com cerca de 45 milhões de habitantes, a Argentina já registrou mais de 3,7 milhões de casos e 78 mil mortes. Enquanto isso, o Brasil abre suas portas diante de um cenário com mais de 16,5 milhões de casos e quase 500 mil mortes.
Seria cômico se não fosse trágico. O governo levou nove meses para responder a oferta de imunizantes da Pfizer, colocando enormes entraves políticos e burocráticos que resultaram na paralisação, por três meses, da compra da vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Cálculo do epidemiologista Pedro Hallal, recentemente divulgado pela Folha de S.Paulo, aponta que, com o quantitativo de Coronavac desprezado em 2020, poderíamos ter evitado pelo menos 80.300 mortes até maio deste ano.
O resultado é que temos menos de 11% da população vacinada com as duas doses recomendadas. Mas esse mesmo governo que caminhou a passos de lesma para adquirir vacinas, correu mais rápido que o ídolo Mané Garrincha na histórica Copa do Chile em 1962 para, em poucas horas, se tornar a sede da Copa América, 13 dias antes do início da competição.
A justificativa de que o evento será sem público nos estádios é falsa, criada para explicar o inexplicável. São 10 seleções, incluindo comissões técnicas, que chegarão ao país sem tempo hábil para realização de quarentena. Além disso, eventos dessa magnitude exigem reserva de leitos hospitalares para atletas. Temos ainda a estrutura de segurança pública mobilizada para garantir apoio às delegações. Para completar, em alguns estados, como na Bahia, os estádios hoje sediam hospitais de campanha e postos de vacinação. Isso sem contar com a incontrolável circulação de torcedores das seleções de países vizinhos ao nosso. Já vimos essa movimentação intensa quando sediamos a Copa do Mundo, em 2014, e a Copa América, em 2019.
A atitude irresponsável dos terraplanistas que hoje ocupam o Palácio do Planalto contrasta com a disposição de sediar outros eventos internacionais relevantes, mesmo antes da pandemia. Em 2018, logo após ser eleito, o presidente da República recomendou ao Itamaraty que não fosse realizada no Brasil a Conferência do Clima da ONU, a COP 25. O evento, de alto nível, acabou sendo na Espanha e reuniu autoridades do mundo todo para debater a emergência ambiental que vivemos. As práticas do governo brasileiro, no entanto, explicam o desinteresse com este importante evento: é incompatível receber governantes para discutir Meio Ambiente quando se promove a destruição do nosso patrimônio natural.
Somos o país do futebol e nos orgulhamos de ter o esporte como uma diversão que encanta nossa gente. O que não podemos, diante de tanta dor e sofrimento, é desprezar o momento de crise sanitária e social que vivemos. Tudo o que não precisamos é de um evento deste porte que pode ser justamente o gatilho que falta para o avanço de uma terceira onda de contágio. A disseminação de novas variantes ainda desconhecidas do vírus, conforme alertam especialistas, pode jogar pelo ralo os esforços que até aqui foram feitos para salvar vidas.
Diante desse quadro na saúde pública, do recorde de desemprego e desalento que atinge 21 milhões de brasileiros, da volta da fome e da carestia que assola as famílias, a Copa América se transforma no Baile da Ilha Fiscal ou no Titanic dos atuais tempos. Não podemos permitir que isso se concretize. A crueldade diante do sofrimento do povo precisa ter limites.