Representantes da sociedade e estudiosos da dívida pública brasileira denunciaram, em audiência pública nesta segunda-feira (12), que o Senado está em vias de votar projeto que cria “esquema para falsear a venda de créditos incobráveis”. Por isso, pediram a rejeição do projeto de Lei do Senado (PLS nº 204/2016) ou, pelo menos, a retirada do regime de urgência para análise, fazendo com que o texto seja discutido detidamente em diversas comissões. O debate ocorreu na Comissão de Direitos Humanos (CDH), presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS).
De acordo com a senadora Regina Sousa, a proposta que tramita no Senado em regime de urgência precisa ser melhor analisada. “Tem que passar pelas comissões antes de ir ao plenário”, cobrou. O projeto permite à administração pública, nas três esferas de governo, vender os direitos sobre créditos de qualquer natureza, desde que sejam objeto de parcelamentos administrativos ou judiciais. Para isso, poderiam ser criadas empresas públicas não dependentes, composta por sócios públicos, mas regidas pelo direito privado, que negociariam os ativos dos entes federados por meio de títulos vendidos no mercado financeiro com o compromisso de pagamento de juros, as chamadas debêntures.
Segundo informou Maria Lúcia Fatorelli, coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, o projeto não detalha como será feita essa cessão dos direitos sobre os créditos, mas diz explicitamente que pretende dar segurança jurídica ao que já é praticado por algumas administrações no Brasil.
Ao analisar o que tem sido feito nos estados e municípios que abriram a empresa e emitiram as debêntures, a especialista disse que a emissão desses papéis foi lastreada pelos próprios entes federados, ferindo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ao usar o subterfúgio das “debêntures subordinadas”. Esses papéis são vinculados às debêntures seniores, mas apenas estas são negociadas.
Na opinião de Maria Lúcia, se o modelo for replicado aumentará a dívida pública de estados e municípios e deve piorar o problema de caixa dos entes federados. Além disso, segundo ela, o montante de recursos que entraria seria rapidamente gasto com a própria manutenção e remunerações de dirigentes da empresa não dependente.
O “tom maquiavélico da questão”, segundo Maria Lúcia, é que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, em análise na Câmara, prevê a restrição de gastos e investimentos sociais por 20 anos, o que pode reduzir as verbas para a saúde e a educação, mas deixa explícita a garantia de recursos para “estatais não dependentes” e pagamentos da dívida pública.
Para Regina Sousa (PT-PI), tudo parece “um grande esquema”, e é preciso descobrir se alguém está atuando como “laranja”. A parlamentar piauiense defendeu a ideia de que o Senado forme uma Comissão Geral no plenário do Senado para discutir o tema com todos os senadores. “Estão consolidando a destruição do Estado Brasileiro muito rápido”.
Falsa percepção
Para Maria Lúcia, o público geral e até alguns parlamentares estão com a falsa percepção de que o que será vendido por debêntures são as dívidas impagáveis de cidadãos com o Estado. Então, seria vantajoso os governos se livrarem, mesmo com deságio, de uma “dívida podre para um investidor louco que paga 40% ou 50% por ela”.
Ela adverte, contudo, que o próprio texto do projeto deixa claro que esse crédito não está sendo vendido. Está expresso que “a venda não pode alterar as condições de pagamento já estabelecidas para o crédito e nem transferir para o setor privado a prerrogativa de cobrança judicial, que deve permanecer com o poder público”, observou. O que está sendo vendido são os direitos creditórios originários desses créditos, frisou.
“Esse crédito não está sendo vendido, ele continua cobrado pelos entes, o que está sendo dada é a garantia para essa empresa emitir papel novo, debênture sênior. Papel novo com garantia estatal sendo vendido com desconto para investidores privilegiados, e que ainda paga juros de mais de 20% sobre o valor de face, o que dá mais de 40%, tudo com garantia estatal”, denunciou Maria Lucia.
O que deixa a coisa mais desconcertante, acrescentou Maria Lúcia, é que os títulos não são vendidos para pessoas comuns, mas apenas para investidores privilegiados que os pagarão em parcelas anuais, a juros de 12,5%. Enquanto isso, afirmou, serão remunerados a juros de, pelo menos, 23% sobre o valor original do papel.