No Dia da Consciência Negra, celebrada em 20 de novembro, quero convidar cada um dos negros, de pele ou de coração, deste país a lutar pela concretização da Lei 10.835/2004, a Renda Básica de Cidadania.
Não tenho dúvidas de que esta Lei contribuirá para a construção de um país livre do preconceito e da discriminação em todas as suas formas e escalas.
Pois a Renda Básica não vê diferença entre brancos e negros, entre ricos e pobres, entre católicos e candomblecistas…
Eu sou um brasileiro de corpo branco, mas de alma libertária sem cor. Sou um católico que comungo com os anseios maiores expressos numa das orações mais belas da história da humanidade, “Eu tenho um sonho”, de 28 de agosto de 1963, proferida por Martin Luther King Jr.
Em meu corpo corre não só o sangue biológico, mas o sangue cultural, feito da mistura que reúne europeus, índios e negros.
Nós, brasileiros, somos seres mestiços por natureza.
A Renda Básica de Cidadania pode traduzir esse encontro de culturas em justiça social.
A Consciência Negra, assim como o teor da Lei 10.835/2004, nos ensina que a luta deve ir além da discriminação racial, pregando uma sociedade livre e justa.
A Lei Áurea aboliu a escravatura, mas não foi capaz de apagar séculos e séculos de uma cultura voltada à escravidão e inferiorização do negro.
Mais de cem anos depois da abolição, os negros ainda não são livres de fato, não tendo as mesmas condições de educação, de renda, de emprego, de saúde e de sobrevivência que os brancos.
O racismo brasileiro coloca os afrodescendentes em desvantagem, em uma condição claramente desigual e desumana.
Os negros ainda são segregados, discriminados, excluídos do país que construíram foram pés e mãos do senhor.
Joaquim Nabuco em sua obra “Minha Formação” previu esse cenário, dizendo que a escravidão marcaria por longo tempo a sociedade brasileira porque ela não teria sido seguida de “medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública”.
Florestan Fernandes em seu livro “A Integração do Negro na Sociedade de Classes” reforça essa tese: “Não obstante, o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do passado no presente”.
Gilberto Gil, na canção “A mão da limpeza”, também segue esse raciocínio:
“Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza”
Não há dúvida de que a abolição da escravatura no Brasil está incompleta.
Os afrodescendentes são maioria em termos de população e minoria em termos de cidadania.
A RBC é tão importante quanto se universalizar as boas oportunidades de educação para todas as crianças, todos os jovens, todos os adultos. É essencial inclusive para possibilitar que todos tenham as condições dignas de sobrevivência para poderem estudar.
Isso porque prevê a eliminação da miséria e da pobreza, bem como a geração de oportunidade para todos, sem levar em consideração a cor da pele…
E eu posso afirmar, com segurança, que sua aplicação não será uma alforria restrita ao papel ou à letra da lei, pois alcançará as consciências.
E essa questão da consciência é fundamental, pois na medida em que todos compreenderem que os benefícios desta Lei, inclusive aqueles que têm mais recursos financeiros, teremos condição de aprovar a criação de um mecanismo pelo qual se separará uma parte da riqueza da Nação para se formar um fundo que pertencerá a cada brasileiro.
Assim, aqueles que têm mais condições contribuirão para que eles mesmos e todos os demais venham a receber essa renda, com seu caráter universal e não discriminatório.
Milito em favor da aplicação da RBC como quem milita por uma abolição de verdade.
Quando falo nesta Lei, falo em uma inclusão espontânea, de cada um segundo sua própria história, seus valores, suas expressões. Uma inclusão democrática, que não anula a diversidade.
O sociólogo português Boaventura Sousa Santos costuma dizer que “devemos lutar pela igualdade toda vez que a diferença nos discrimina, mas devemos lutar pela diferença, toda vez que a igualdade nos descaracteriza”.
A grandeza da RBC é poder trabalhar com a pluralidade, é poder compreender nas diferenças o conjunto da igualdade humana.
Sou defensor das cotas raciais, em caráter emergencial, tanto que me manifestei favorável ao tema no dia 28 de junho último, quando a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado aprovou o Projeto de Lei da Câmara 180/2008, que prevê cotas raciais e sociais para o ingresso no ensino público superior.
Neste momento, as cotas são ferramentas importantes para impulsionar o negro a ocupar seu lugar na sociedade, seja em faculdades ou em postos de trabalho. Um balanço da Universidade de Brasília, uma das pioneiras na adoção das cotas, revela que em oito anos de funcionamento do Sistema de Cotas para Negros, o número de afrodescendentes na universidade aumentou de 2 para 10,5%.
Houve um avanço considerável. No entanto, ainda estamos longe do ideal. Em 2014, quando o programa completar 10 anos, sua continuidade será avaliada pelo Conselho Universitário. Essas avaliações periódicas que vão acontecer não só em relação à UnB, mas a todas as universidades que aderiram às cotas, são fundamentais, pois as cotas, como uma política afirmativa aplicada em caráter temporário, têm uma missão a cumprir.
A missão de promover maior acesso de pessoas negras aos bancos de universidades públicas é constitucional e necessária para corrigir distorções culturais históricas existentes no Brasil. No entanto, trata-se de uma medida temporária. É importante ressaltar que levantamentos realizados em faculdades nas quais as cotas foram adotadas os cotistas tiveram desempenho tão bom quanto os alunos que ingressaram pelo sistema convencional.
Na Lei 10.835/2004 não há risco de discriminação ou dependência, pois a riqueza da Nação é dividida para cada um dos brasileiros, sem distinção.
A Renda Básica é incondicional, igual para todos.
Não é uma lei para negros ou índios ou segmentos ou minorias. É uma lei para brasileiros.
A experiência das cotas deixa claro que não adianta somente facilitar o acesso às universidades por meio das cotas, é preciso se preocupar também com a manutenção desses estudantes na graduação. A RBC tem condições de garantir a permanência deles.
Essa renda não vai fazer com que os negros desistam do trabalho ou da faculdade, pelo contrário. Além de acabar com o sentimento de estigma inevitável quando se trata de cotas e programas assistencialistas, a Renda Básica vai atender as necessidades vitais de cada um, permitindo a busca por melhores trabalhos e mais estudos.
Diante do sentimento de que os escravos negros nunca tiveram o direito de participar da riqueza da nação, a renda para todos é um direito emancipatório, um grito de liberdade.
A Lei diz que a Renda Básica de Cidadania será alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando as camadas mais necessitadas da população, o que significa que o Programa Bolsa Família pode ser visto como um passo importante de sua implementação. Assim, essa boa nova está chegando primeiro, e sobretudo quando for plenamente instituída, para aqueles que muitas vezes foram os últimos: os negros dos quilombos, os negros das favelas, os negros dos viadutos, os negros das filas de emprego, os negros das sarjetas, os negros dos corredores dos hospitais públicos, os negros de corpos e espíritos calejados, os negros dos presídios…
Em verdade, para efetivamente se alcançar aqueles que se encontram tão marginalizados até para se inscreverem num programa que exige certas condicionalidades e exigências burocráticas, a RBC significará enorme simplificação pelo simples fato de que bastará a pessoa estar viva e ser residente no Brasil (até mesmo para os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais) para ter o direito de recebê-la.
O Programa Bolsa Família iniciou-se em outubro de 2003, ao unificar os Programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação. Esses programas se iniciaram com experiências locais de Renda Mínima relacionada às Oportunidades de Educação – no Distrito Federal, em Campinas, Ribeirão Preto, dentre outras – até que tomaram caráter nacional. Em dezembro de 2003, eram 3,5 milhões de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família. Após nove anos, em novembro de 2012, são cerca de 13,7 milhões de famílias beneficiadas, o que corresponde a mais de 50 milhões de brasileiros, ou mais de um quarto dos 194 milhões de habitantes do Brasil.
O Programa Bolsa Família contribuiu muito para a redução da pobreza absoluta e do nível de desigualdade no Brasil. O coeficiente de Gini, que havia atingido 0,599, em 1995, 0,601, em 1996, diminuiu gradualmente, a cada ano, chegando a 0,594 em 2001, 0,587 em 2002, 0,581 em 2003, 0,569 em 2004, 0,566 em 2005, 0,559 em 2006, 0,544 em 2008 , 0,530 em 2009, 0,526 em 2010 e 0,519 em 2012.
Apesar dos progressos alcançados, o Brasil ainda está entre os países mais desiguais do mundo. De acordo com o censo do IBGE de 2010, enquanto no Brasil 10% mais pobres vivem com 1,1% da renda nacional, 10% mais ricos vivem com mais de 44,5%. Na lista de 2012 dos países por igualdade de rendimentos do Banco Mundial, o Brasil é o 15º com o maior coeficiente de Gini ou a 15ª nação das mais desiguais do mundo.
Vale destacar que segundo o “Retrato das Desigualdades”, publicado pelo IPEA, em 2011, 70% dos domicílios que recebiam os benefícios do Bolsa Família em 2006 eram chefiados por negros ou negras. É relevante que a situação dos negros é também próxima da dos índios. Pesquisa sobre o perfil indígena feita pelo DataFolha, encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), publicada pela “Folha de S. Paulo”, em 10/11/2012, revela que 64% dos índios no Brasil são beneficiários do Programa Bolsa Família, recebendo, em média, R$ 153 por mês.
Uma das faces mais bonitas desta Lei que institui a RBC é a que não faz qualquer distinção de raça, pois beneficia integralmente a raça humana.
E como não basta uma consciência negra, mas uma consciência negra ativa, rebelde, transformadora para lutar pela verdadeira liberdade, os negros precisam, em uníssono, dizer à presidenta Dilma Rousseff que a aplicação da RBC é o caminho mais fácil, certo e rápido para se chegar a uma nação justa.
Segundo mensagem do professor Celso Furtado, de Paris, datada de 8 de janeiro de 2004, ao presidente Lula, o Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, com a sanção da Lei de Renda Básica de Cidadania, coloca-se na vanguarda daqueles que lutam pela construção de uma sociedade mais solidária.
Ao celebrar a Consciência Negra, recorro à filosofia africana Ubuntu, para dizer que a crença no compartilhamento é o que conecta toda a humanidade.
Essa filosofia, cujo nome tem origem nos povos Banto, existe em muitos países da África. Significa acolhimento, respeito, entreajuda, partilha, comunidade, generosidade… Entre os inspiradores dessa filosofia estão Nelson Mandela, Desmond Tutu e Martin Luther King Jr.
Para explicar melhor essa ética africana, vou narrar o que ocorreu certa vez com um antropólogo que estava estudando os costumes de uma tribo na África. Essa história costuma estar sempre presente nas palestras que a jornalista e filósofa argentina Lia Diskin faz pelo mundo. No Festival Mundial da Paz, em Florianópolis, em 2006, ela brindou à plateia com esse relato que tão bem traduz o conceito de Ubuntu e também o da Renda Básica de Cidadania.
Ao concluir seus trabalhos e se despedir de uma das tribos, o antropólogo teve a ideia de fazer uma brincadeira. Encheu um cesto bem vistoso com guloseimas que tinha comprado na cidade e o colocou debaixo de uma árvore. Reuniu as crianças da tribo em uma espécie de linha de largada e combinou que ao seu sinal elas poderiam correr até o cesto. Quem chegasse primeiro, ficaria com todos os doces.
Porém, para surpresa do antropólogo, quando ele deu o sinal, as crianças imediatamente deram as mãos e saíram correndo todas juntas em direção ao cesto. Quando chegaram lá, dividiram entre si os doces.
O antropólogo então perguntou a razão delas terem feito isso se uma só poderia ficar com todos os doces. Uma delas respondeu:
“Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?”
Isso é Ubuntu…
É com esse espírito, da ética Ubuntu, que tem como uma de suas traduções “Sou porque nós somos”, que eu convido todos os brasileiros a lutarem pela concretização da Lei 10.835/2004.
A Renda Básica de Cidadania pode fazer do Brasil um grande Palmares, onde negros, brancos, índios, mestiços possam viver em condições de igualdade, sem preconceito ou discriminação, dividindo as riquezas de uma terra que não tem cor.
Neste Dia da Consciência Negra, quero relatar, com muito orgulho, que a Universidade Zumbi dos Palmares e a Afrobrás concederam o Troféu Raça Negra para a Sra. Bernice King, filha de Martin Luther King Jr, entregue pelas mãos do Reitor Prof. José Vicente, no dia de ontem, em uma cerimônia a qual tive a honra de ser convidado e que estive presente.
Em “Where Do We Go From Here: Chaos or Community?”, New York, Harper Row (1967), Martin Luther King Jr diz: “Eu agora estou convencido de que o mais simples meio provará ser o mais eficaz – a solução para a pobreza é aboli-la diretamente por meio de uma medida agora amplamente discutida: a renda garantida.”
Uma boa maneira de honrar a memória de quem tão bem expressou: “Eu tenho um sonho: o sonho de ver meus filhos julgados pelo caráter, e não pela cor de sua pele” será justamente nos unirmos para expressar à nossa querida Presidenta Dilma Rousseff, assim como a todos os governadores e aos novos prefeitos recém-eleitos. Vamos colocar em prática a Lei que institui a Renda Básica de Cidadania, aprovada por todos os partidos no Congresso Nacional, após os passos tão positivos que foram alcançados pelo Programa Bolsa Família.
Em 2006, por ocasião da abertura do XI Congresso Internacional da Basic Income Earth Network, BIEN, ou Rede Mundial da Renda Básica, tive a felicidade de ouvir o comovente pronunciamento do Prêmio Nobel da Paz, Bispo Desmond Tutu em que ele conclamou a todos nós ali presentes para batalharmos pela implantação de uma Renda Básica Incondicional como um Direito à Cidadania de pelo menos dois dólares por dia em todos os países do mundo. Dentre os presentes, estava o Bispo Zephaniah Kameeta da Namíbia, Presidente da Namibian Coalition for a Basic Income. Desde 2008, na vila rural de 1000 habitantes, Otjiviero, a cem quilômetros da capital Windhoek, ali se iniciou uma experiência pioneira e bem sucedida, que visitei pessoalmente em 2011, de se pagar cem dólares da Namíbia a todos seus habitantes.
Tanto para os negros como para os indígenas e pessoas de todas as raças é importante compreender que a principal vantagem da Renda Básica de Cidadania é justamente do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano. Conforme expõe tão bem o Professor Philippe Van Parijs, da Universidade Católica de Louvain, em “Real Freedom for All. What (if anything) can justify capitalism?”(1995) Oxford, Oxford University Press, e fundador da BIEN: Uma vez que uma pessoa e todas em sua família tenham o direito à RBC, ela sempre terá a possibilidade de dizer NÃO a uma única alternativa de atividade que lhe surja pela frente se esta lhe ferir a dignidade, colocar a sua saúde ou vida em risco; até que apareça uma nova oportunidade mais de acordo com a sua vontade e vocação.
A primeira juíza negra do Brasil, a Desembargadora Luislinda Dias de Valois Santos, captou muito bem esta percepção. Por isto, em 1º de maio de 2011, encaminhou uma carta à presidenta Dilma Rosseff, propondo a rápida instituição da RBC.
Neste momento em que se registram cenas de violências dramáticas em nossas grandes metrópoles, por vezes envolvendo policiais de origem humilde, contraventores e até trabalhadores inocentes mortos em meio aos tiroteios, tenho a convicção, cada vez maior de que a implantação plena da RBC será um formidável passo de efetiva pacificação de nosso país pelo sentimento de realização, de solidariedade e de justiça que passarão a estar presentes na sociedade brasileira.