Renegociação das dívidas ameaça as contas nacionais?

Marcos Rogério de Souza, assessor jurídico da Liderança do PT e Bloco de Apoio ao Governo no Senado Federal, diz que não -  e explica porque dívidas como a de São Paulo (acima) se tornaram impagáveis.

 

Tramita no Senado Federal o PLC 99/2013, que trata da renegociação dos termos contratuais das dívidas entre a União, de um lado, e os Estados e os municípios, de outro, atendendo a uma antiga reivindicação de governadores e prefeitos.
De autoria do Poder Executivo, o projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e se encontra na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, com relatoria do senador Luiz Henrique (PMDB-SC). Na sequência, será apreciado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e, então, pelo Plenário do Senado. Por ser um projeto de lei complementar, exige a aprovação por maioria absoluta. Caso seja aprovado sem alterações, seguirá para sanção presidencial. Se for modificado, será devolvido à Câmara.

Na década de 1990, como parte do esforço para assegurar a estabilidade monetária, o governo federal assumiu as dívidas dos Estados e Municípios. Em contrapartida, celebrou contratos com esses entes, refinanciando o saldo dessas dívidas em 360 meses, com juros de 6% a 9% ao ano, acrescidos de atualização monetária pelo IGP-DI. 
Naquele momento, tais encargos representavam um subsídio, já que eram menores que o custo de captação da União. A conjuntura econômica, porém, se alterou substantivamente de lá para cá. Com a redução dos juros reais no País e do custo de captação da União, a taxa Selic passou a ser mais baixa que o IGP-DI. Isso significa que os encargos pagos por Estados e Municípios é superior às taxas com que a própria União se financia. Enquanto a Selic acumulada entre maio de 2000 e dezembro de 2012 foi de 452%, os encargos acumulados aplicados a diversos municípios foram de 762%.

As taxas acumuladas de IGP-DI+9% entre maio de 1997 e dezembro de 2012, usadas para corrigir os débitos de Estados como São Paulo, superam a Selic em 349 pontos percentuais.

 

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A distorção é evidente. Em valores absolutos, o montante refinanciado somava R$ 127,3 bilhões em dezembro de 1998. Até dezembro de 2012, apesar de terem sido pagos R$ 263,6 bilhões, o saldo devedor somava R$ 467 bilhões, conforme demonstram os gráficos abaixo.

 

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É preciso lembrar que a repactuação das dívidas ocorreu no final da década de 1990, no bojo do Programa de Ajuste Fiscal (PAF), que foi assinado pelos governadores dos 25 Estados que refinanciaram seus débitos (Amapá e Tocantins não o fizeram). O PAF apresenta metas anuais para um triênio, considerando a evolução das finanças estaduais, os indicadores macro-econômicos para o novo período e a política fiscal adotada pelos governos estaduais. A cada ano é avaliado o cumprimento das metas e compromissos do exercício anterior.
O PAF estabelece ainda que os entes subnacionais devem efetuar o pagamento dos encargos e amortizar parte do principal. O comprometimento anual, porém, é limitado a 13% da receita corrente líquida (RCL) do ente. Ademais, o programa impede que o ente contraia empréstimos sem que tenha capacidade de adimplemento.
As obrigações contratuais fixadas pelo PAF, somadas aos mecanismos instituídos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), permitiram que o endividamento dos estados e municípios melhorasse consideravelmente. A dívida líquida dos Estados caiu de 18,1% do PIB em 2001, para 10,7%, em agosto de 2013.

 

A melhora não impediu a explosão das dívidas de Estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Alagoas. Minas Gerais, por exemplo, refinanciou R$ 14,85 bilhões, em 1997. Até 31/12/2012, havia pago R$ 25,94 bilhões, mas seu saldo devedor somava R$ 63,47 bilhões. A situação não é diferente para o Estado de São Paulo, que refinanciou R$ 46,5 bilhões, pagou R$ 78,3 bilhões e devia R$ 184,2 bilhões, em dezembro de 2012. 

 

A dívida líquida dos Municípios também sofreu sensível redução: de 2,6% do PIB em 2002, para 1,8% em agosto de 2013.

A melhora não impediu a explosão das dívidas de estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Alagoas. Minas Gerais, por exemplo, refinanciou R$ 14,85 bilhões, em 1997. Até 31/12/2012, havia pago R$ 25,94 bilhões, mas seu saldo devedor somava R$ 63,47 bilhões. A situação não é diferente para o Estado de São Paulo, que refinanciou R$ 46,5 bilhões, pagou R$ 78,3 bilhões e devia R$ 184,2 bilhões, em dezembro de 2012. (veja os gráficos abaixo). A dívida líquida dos Municípios também sofreu sensível redução: de 2,6% do PIB em 2002, para 1,8% em agosto de 2013.

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O caso de São Paulo
Apesar da melhora geral, a dívida do Município de São Paulo tornou-se impagável. Em 2000, a cidade refinanciou R$ 11,3 bilhões. Em 12 anos, pagou o equivalente a R$ 19,5 bilhões, mas seu saldo devedor em 31/12/2012 somava R$ 54,0 bilhões. Nesse período, o município comprometeu 13% de sua receita corrente líquida com o pagamento das dívidas, reduzindo sensivelmente sua capacidade de investimento. Atualmente, a parcela devida anualmente da dívida é mais que o dobro dos investimentos feitos e, mesmo assim, o Município não conseguirá pagar sua dívida até o final do contrato em 2030.
O gráfico abaixo sintetiza o endividamento dos entes federativos mencionados:

 

 

 

 

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A evolução da dívida intralimite no Rio Grande do Sul demonstra que os encargos aumentam o estoque em proporção superior ao da receita corrente líquida. Assim, mesmo comprometendo 13% da RCL, o Estado não consegue reduzir seu saldo devedor. (veja o gráfico abaixo)

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Todos esses números apontam para a importância de se repactuar os termos contratuais das dívidas dos Estados e Municípios. Esse é o propósito do PLC 99/2013, que, em linhas gerais:

i] substitui o fator de correção do atual IGP-DI mais 6% a 9% anuais pelo IPCA mais juros reais de 4%, limitado ao teto da Selic;

ii] permite a readequação dos saldos devedores dos entes que tiveram encargos acumulados superiores ao custo básico de captação de recursos da União (Selic).
A taxa Selic atual está em 10%. Para 2013, o boletim Focus projeta o IPC + 4% em 9,8%, ao passo que o IGP-DI + 9% poderá chegar em 14,8%. A mudança do indexador, portanto, terá um efeito bastante positivo na dívida futura.
A aplicação retroativa da Selic também terá impacto significativo sobre o saldo devedor, já que, na grande maioria dos casos, as taxas acumuladas de Selic são inferiores às taxas contratuais.
As duas medidas combinadas – mudança do indexador e aplicação da Selic sobre o estoque – melhoram a situação fiscal dos Estados e municípios.
Os críticos alegam que a proposição esbarra no art. 35 da LRF, segundo o qual é vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação e outro, ainda que sob a forma de refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente. Ocorre que não se trata de nova operação de crédito. O PLC apenas autoriza as partes contratantes a modificarem os termos contratuais, para assegurar equilíbrio econômico-financeiro, reestabelecendo a relação original entre encargos e vantagens.

As condições mudaram desde a renegociação das dívidas, o que afeta a equação econômico-financeira do contrato. Daí porque é necessário promover a adequação das cláusulas contratuais para recompor o equilíbrio original. Note-se que não estão sendo concedidos novos benefícios aos Estados e Municípios, e sim readequação dos existentes para que, ao menos, não sejam instrumentos de geração de lucro por parte da União. Não se trata, portanto, de refinanciamento, anistia ou remissão, razão pela qual o PLC não conflita a LRF.

O nível de endividamento dos Estados também não será substantivamente afetado. Primeiro, porque o grau de comprometimento da RCL para pagamento dos débitos de cada ente subnacional não será modificado. Segundo, porquanto os Estados e Municípios continuarão proibidos de emitir valores mobiliários e os montantes de empréstimos permanecerão subordinados ao Programa de Ajuste Fiscal. Até porque o projeto não mexe na competência do Ministério da Fazenda de verificar o cumprimento dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação.

Em suma, a aprovação do PLC 99/2013 permitirá o reequilíbrio econômico-financeiro de contratos que, há tempos, destoam dos objetivos que nortearam sua celebração, readequando-os ao objetivo primordial da Lei de Responsabilidade Fiscal. No longo prazo, a proposição contribuirá para melhorar as finanças dos entes subnacionais, permitindo o aumento de sua capacidade de investimento, o que certamente contribuirá para a consolidação do desenvolvimento do Brasil.

 Marcos Rogério de Souza é assessor técnico da Liderança do PT no Senado

 

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