“Não vai ter um centímetro demarcado para terras indígenas e quilombolas.” A frase de Jair Bolsonaro, durante palestra no Clube Sociedade Hebraica, em abril de 2017, era mais do que uma pontual promessa de sua antecipada campanha para presidente. O tom agressivo com que a pronunciou indicava que seu governo, para usar uma linguagem comum aos militares, não trataria os povos originários como aliados, mas inimigos.
Uma vez na Presidência, Bolsonaro continuou a hostilidade em relação aos indígenas. Não bastava a paralisação da demarcação de terras, ele queria também a legalização do garimpo nas áreas já concedidas, declaração feita repetidas vezes e que encorajou garimpeiros a avançar sobre o espaço das tribos, como vem ocorrendo agora com os yanomamis, em Roraima.
O ataque do atual presidente ocorreu até mesmo na Assembleia das Nações Unidas. Em setembro do ano passado, Bolsonaro culpou os indígenas pelas queimadas nas florestas brasileiras, uma declaração que segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “demonstra a má-fé, o preconceito e a irresponsabilidade do presidente do Brasil perante outras nações”. Não poderia haver, portanto, momento pior para os indígenas brasileiros enfrentarem uma doença mortal como a Covid-19.
Proteção necessária, mas vetada
Diferentes instituições alertaram para a necessidade de uma proteção especial a essas populações diante do novo coronavírus. Ainda em abril de 2020, o Ministério Público Federal do Distrito Federal (MPF-DF) recomendou que o Ministério da Saúde adotasse uma série de medidas , como a inclusão dos indígenas em grupo prioritário de vacinação contra gripe, o fornecimento de alimentos e produtos de higiene e a distribuição de insumos laboratoriais, como testes PCR e sorologia, e respiradores.
O Congresso Nacional também fez sua parte. Naquele mesmo mês, foi apresentado na Câmara, após articulação das deputadas federais Professora Rosa Neide (PT-MT), Talíria Petrone (PSol-RJ) e Joenia Wapichana (REDE-RR), projeto de lei criando o Plano Emergencial para Enfrentamento ao coronavírus nos territórios indígenas, prevendo várias das medidas propostas pelo MPF.
Porém, quando sancionou o plano, em julho de 2020, Bolsonaro vetou vários trechos, como os que obrigam o governo a fornecer às aldeias água potável, cestas básicas e materiais de limpeza e de desinfecção, além de garantir a oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva para essas comunidades. Ao justificar o veto à água potável, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que os indígenas podiam beber água dos rios (veja no vídeo abaixo).
Partidos de oposição recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que ordenou o governo Bolsonaro a cumprir as medidas previstas no projeto. Mas, segundo as principais lideranças indígenas do país, o Executivo pouco fez. Dados de dezembro de 2020 apontavam que a mortalidade por Covid-19 entre indígenas era 16% maior que a do restante da população. E, em março deste ano, a doença já havia afetado 163 povos e matado mais de mil indígenas, incluindo importantes líderes, como Gerson Pataxó e Aritana Yawalapiti.
Denúncia e retaliação
A situação levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) a produzir uma série de filmes denunciando ao mundo o ataque sofrido por essas populações no Brasil. Um dos episódios, no qual se pedem medidas contra o avanço dos garimpos, das queimadas, do agronegócio e da Covid-19 sobre terras indígenas, foi denominado Genocídio (assista aqui).
Neste ano, o governo Bolsonaro reagiu ao clamor dos indígenas. Por meio da Casa Civil, encomendou a servidores federais que reúnam argumentos que ajudem a defender Jair Bolsonaro da acusação de promover “genocídio indígena”, expressão que compõe o item 15 da lista de crimes do governo durante a pandemia e que deu origem a esta série Réu confesso. Já por meio da Funai, processou a APIB e uma de suas coordenadoras, Sonia Guajajara, por ter produzido a série de filmes, acusando-as de difamação.