Agosto de 2020. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) publica nota de recomendação na qual demonstra preocupação com os estoques de kit intubação, conjunto de medicamentos necessários para intubar e manter vivos pacientes com casos graves de Covid-19. No documento, o colegiado lembra a obrigação do governo federal de centralizar as compras, pede que o Ministério da Saúde tome providências para garantir a oferta e indaga por que a pasta cancelou a aquisição dos remédios. E alerta: “O desabastecimento desses medicamentos coloca em risco toda a estrutura planejada para o atendimento de saúde durante a pandemia do novo coronavírus”.
Fevereiro de 2021. A profecia do CNS tragicamente começa a se realizar. Em Parintins (AM), pacientes passam a ser intubados sem anestesia. Para evitar que arranquem os tubos devido à imensa dor, enfermeiros os amarram na cama. A crise se espalha. Em abril, hospitais começam a desativar leitos de UTI porque não têm como intubar os doentes, e as cenas de pessoas amarradas se repetem em hospitais do Sudeste. “Fico transtornado. Você vê paciente igual um peixe fora da água abrindo a boca, mordendo o tubo o tempo inteiro, completamente agitado”, revela ao G1 um médico que trabalha na Zona Norte de São Paulo.
No documento em que listou os crimes do governo Bolsonaro na pandemia, a Casa Civil da Presidência da República anotou, no item 13: “Falta de insumos diversos (kit intubação)”. A escolha das palavras não podia ser mais precisa. De fato, ao longo de toda a pandemia, o Executivo deixou faltar inúmeros insumos, como máscaras adequadas para a proteção dos profissionais de saúde. Mas a escassez do kit intubação merece destaque pelo imenso risco e sofrimento que causa aos pacientes, comparável talvez apenas à falta de oxigênio ocorrida no Amazonas, outro triste episódio já abordado por esta série Réu confesso.
Cartilha de Guedes
A falta de equipamentos e insumos nos hospitais é resultado claro da forma como Jair Bolsonaro decidiu lidar com a pandemia do novo coronavírus. A escolha pela imunidade de rebanho, ou seja, por atuar para que o maior número de brasileiros se infectasse no menor espaço de tempo possível, atendia um objetivo anterior: gastar o mínimo possível de recursos públicos.
Como analisou o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, ao comentar na TVPT o depoimento de Carlos Murillo, da Pfizer, à CPI da Covid, o governo Bolsonaro trabalhou com dois grandes objetivos: “O primeiro era expor a população (ao vírus), na teoria da imunidade de rebanho. (…) E tem a lógica da orientação econômica deste governo, que é de restringir ao máximo o gasto público” (veja a análise no vídeo abaixo, já programado para começar na fala de Chioro). Ou seja, mesmo diante da maior pandemia do século, a cartilha de Paulo Guedes de reduzir o Estado e, se possível, zerar os investimentos públicos continuou sendo a palavra de ordem.
E há dados que comprovam a opção feita de privilegiar a “saúde do mercado” em detrimento da vida dos brasileiros. Em 19 de maio de 2020, quatro dias depois de o general Eduardo Pazuello assumir o comando do Ministério da Saúde, o mesmo CNS publicou o manifesto Repassa Já. No documento, o colegiado, que, ressalte-se, integra a estrutura da pasta, mostrava que governo federal tinha R$ 8,4 bilhões ainda não empenhados, oriundos de Medidas Provisórias de crédito extraordinário para resposta à pandemia.
Após fugir da CPI da Covid, na semana passada, Pazuello terá a chance de explicar, na próxima terça-feira (19) essa e tantas outras sabotagens que aceitou colocar em prática ao assumir o comando da Saúde após a saída de Nelson Teich, inclusive a recusa de vacinas. Poderá responder por que, além de atuar para espalhar o vírus, o governo Bolsonaro se recusou a investir em bens que poderiam, ao menos, dar um atendimento digno aos doentes.