Quando repassou aos ministérios a tarefa inglória de reunir dados que pudessem ajudar a defesa de Jair Bolsonaro na CPI da Covid, que investiga os crimes do governo federal na pandemia, a Casa Civil acabou produzindo uma verdadeira confissão de culpa composta por 23 itens, que deram origem a esta série Réu confesso. Negá-los é uma tarefa impossível, a não ser por meio da mentira, mas o tópico 19 da lista certamente representa um desafio ainda maior para a equipe que recebeu a missão de contestá-lo: “Brasil se tornou o epicentro da pandemia e ‘covidário’ de novas cepas pela inação do Governo”.
Rebater essa afirmação é colocar-se contra um consenso mundial. A gestão de Bolsonaro transformou sim o Brasil no epicentro da pandemia e possibilitou que novas cepas, que hoje ameaçam o mundo, surgissem aqui. E quem diz isso são alguns dos mais renomados cientistas e especialistas em saúde pública do mundo.
O Brasil passou a ser apontado como epicentro do novo coronavírus já no terceiro mês da pandemia. Em maio de 2020, quando o Brasil ultrapassou a marca de mil mortes diárias, Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde, da OMS, afirmou: “A América do Sul se tornou um novo epicentro para a doença. Mas certamente o mais afetado é o Brasil”.
Desde então, o país não deixou mais de ser motivo de preocupação mundial. Um mês depois, em junho, respondia por mais da metade das mortes na América Latina. E, em julho, tornava-se o segundo país com mais mortes por Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, fazendo a OMS recomendar o fechamento das atividades econômicas, sugestão ouvida apenas por alguns prefeitos e governadores.
Bolsonaro, porém, não mudou sua postura, atuando para que o vírus corresse solto no país por todo o resto do ano. Até que, em março de 2020, as palavras Brasil e epicentro voltaram a ser relacionadas. E por motivos assustadores. Naquele mês, o país chegou a ter uma de cada quatro mortes no planeta e abrigava, segundo a OMS, 30% de todas as infecções no mundo. A pandemia se descontrolou, os hospitais ficaram abarrotados e caminhava-se para a marca de mais de 4 mil mortes diárias, o que de fato veio a ocorrer.
“É um consenso mundial hoje que o Brasil é a maior bomba-relógio da pandemia do mundo. Nós somos, neste momento, o epicentro da pandemia mundial e com o número, contrário ao resto do mundo, subindo”, diagnosticou, naquele mês, o neurocientista Miguel Nicolelis, professor titular da Duke University.
Colaborando com esse cenário catastrófico que se mantém desde então, estão novas variantes do vírus, como a P1, identificada em Manaus. Capazes de se espalhar mais rapidamente e gerar mais casos graves em pessoas não idosas, essas cepas no novo coronavírus encontraram no Brasil um ambiente perfeito para surgir e se multiplicar, ameaçando todo o mundo.
Assim, além de epicentro, o país passou a ser chamado também de covidário do planeta. “O Brasil se tornou um grande covidário (…) 3 mil mortes por dia, isso é um absurdo”, indignou-se, no último dia 29, o coordenador de testes da Pfizer no Brasil, Cristiano Zerbini. A expressão foi usada também pelo diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês, Paulo Chapchap, sete dias antes. “Se não fizermos um distanciamento físico e a utilização de máscaras, nós nos tornaremos um verdadeiro experimento, um caldo de cultura para o desenvolvimento de variantes. E essas que estão aí não são as piores que poderão vir”, alertou Chapchap.
E Bolsonaro com isso?
Jair Bolsonaro gosta de dizer que não tem nada a ver com o caos vivido pelo Brasil, onde mais de 414 mil pessoas já morreram por causa da Covid-19. Mas não faltam estudos que o desmentem. Um deles, feito pela Universidade de Harvard, concluiu que o vírus só se espalhou dessa maneira, transformando o país em epicentro e covidário, porque não houve uma coordenação nacional de controle da pandemia, algo que cabia ao governo federal fazer.
E o governo federal não fez porque nunca quis. À medida em que a CPI da Covid avança, fica mais claro que o governo estimulou o vírus a se espalhar para que a imunidade de rebanho (coletiva) fosse alcançada de forma natural, depois que 60% ou 70% das pessoas fossem infectadas. Dois estudos, um coordenado pela Universidade de São Paulo (USP) e outro pela Universidade de Michigan em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), concluíram que o governo tomou uma decisão consciente de não frear o avanço do coronavírus no país, mesmo que os cientistas alertassem que tal estratégia resultaria em muitas mortes que poderiam ser evitadas com o isolamento social.
Voltando, portanto, ao começo: “Brasil se tornou o epicentro da pandemia e ‘covidário’ de novas cepas pela inação do Governo”. A Casa Civil da Presidência da República tem razão.