A cada dois dias dos governos Temer e Bolsonaro foram liberados para uso e comercialização três novos agrotóxicos. Mas 8 em cada 10 deles são proibidos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E o atual governo, que aprovou um terço de todos os rótulos em uso, empenha-se na mudança da lei de 1989, que regula o setor, para abrir ainda mais essa porteira. É o PL do Veneno (PL 6.299/2002), que integra um conjunto de propostas, o chamado Pacote do Veneno, que também avança sobre áreas indígenas para atividades como o garimpo (PLs 490/2007 e 191/2020) e legaliza a grilagem de terras (PLs 2.633/2020 e 510/2021). O assunto foi debatido nesta terça-feira (26) pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado.
O presidente da CDH, senador Humberto Costa (PT-PE), recebeu das mãos de Karen Friderich, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Dossiê contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida, documento coletivo produzido por nutricionistas, profissionais da agronomia, meio ambiente e de outras áreas e assinado por entidades como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Associação Brasileira de Agroecologia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS). Elas enfileiraram motivos para que o Senado rejeite o PL do Veneno. A começar pela saúde. “Nada menos que 67% dos agrotóxicos comercializados no Brasil causam câncer e danos hormonais aos humanos e à vida selvagem”, alertou Karen.
“Entre 2019 e 2022 tivemos mais de 1.600 produtos agrotóxicos novos no Brasil. São produtos antigos, obsoletos, muito tóxicos, a maioria deles outros países já baniram, e nos últimos três anos nós abrimos o mercado brasileiro para vender em grande quantidade essas moléculas”, completou a representante da Abrasco.
Além de afetar seriamente a saúde e o meio ambiente, o excesso de veneno representa um tiro no pé do próprio agronegócio, explicou Humberto Costa. O senador teme que a agricultura nacional sofra um revés comercial por conta de regras que só favorecem a indústria do veneno.
“É uma legislação profundamente danosa e nociva à população brasileira e que tão somente procura favorecer grande interesses da indústria fabricante de agrotóxicos, em termos internacionais, bem como alguns setores da agricultura, que, diferentemente de boa parte dos produtores de alimentos no Brasil, querem o lucro a todo custo. E a utilização cada vez maior de agrotóxico lhes permite aumentar a taxa de lucros, ainda que ali na frente isso possa provocar danos à sua própria atividade econômica. São inúmeros os países que fazem restrição à venda e ao consumo de alimentos de países que fazem a utilização abusiva de agrotóxicos. Então, esse tipo de ação pode acabar se voltando contra o próprio agronegócio, contra a produção de alimentos no Brasil, que tem tudo para ser em grande parte orgânica e atender aos interesses da população brasileira”, destacou o senador e médico.
Já a advogada Naiara Bitencourt, que representa a organização Terra de Direitos e integra a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), afirmou que o PL do Veneno fere a Constituição em vários aspectos: tira autoridade de estados e municípios de regular consumo, produção e armazenamento de agrotóxicos; viola os direitos dos consumidores; acaba com o tratamento diferenciado previsto para a análise de produtos que causam danos à saúde; e muda o nome constitucional dado aos agrotóxicos; entre outras agressões. Isso sem falar de convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outros acordos multilaterais assinados pelo Brasil. A própria ONU, em relatório de 2020 sobre resíduos tóxicos, recomenda que o Brasil adote planos e prazos para reduzir a exposição a agrotóxicos, além de abandonar legislações que desregulamentem o assunto, caso do PL do Veneno.
Naiara ressalta, ainda, que o projeto em discussão no Senado prevê que “um agrotóxico que seja autorizado em três países da OCDE, que é um órgão de caráter econômico, e não de saúde ou ambiental, terá autorização para uso no Brasil, ou seja, dois pesos e duas medidas: para autorização se rege de acordo com os países da OCDE, mas para o banimento não se utiliza esse critério”. Como explicado no início do texto, cerca de 81% dos agrotóxicos comercializados no Brasil são proibidos pelos membros da OCDE.
E não é por qualquer motivo, explicou Aline Gurgel, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). “Esses produtos são cancerígenos, mutagênicos e causam problemas hormonais, reprodutivos e malformações fetais”, disse. Sobre a previsão, no PL do Veneno, de que agrotóxicos sejam analisados para avaliar o grau de risco que pode ser aceito pela sociedade, ela é taxativa: “É impossível estabelecer níveis de doses considerados seguros quando se trata de determinados efeitos para a saúde, por exemplo, as substâncias que causam câncer. Em uma única análise, podemos encontrar mais de 20 agrotóxicos num só alimento, e eles podem atuar em conjunto, agravando determinados efeitos na saúde.”
A água, claro, também se contamina. E não é pouco. No Brasil, permite-se 5 mil vezes mais veneno na água do que na Europa. Um desses venenos, o carbendazim, está 1.200 vezes mais concentrado na água daqui, comparativamente à de outros países. O carbendazim é utilizado nas lavouras de feijão, soja, trigo e frutas cítricas, e provoca câncer, prejudica a capacidade reprodutiva e afeta o desenvolvimento humano. Outra substância, a malationa, que causa danos significativos no sistema nervoso central, está 600 vezes mais presente na nossa água do que na dos países do Velho Continente, alerta o Dossiê.
O quadro é grave. Mas os estudiosos alertam que a situação deve piorar muito caso o PL do Veneno seja aprovado, uma vez que ele desregulamenta o mercado e retira poder de órgãos de análise e controle, como a Anvisa e o Ibama. Quem arcaria com as consequências é o consumidor, acredita o representante do Idec, Rafael Riojas Arantes: “É inadmissível que os cidadãos europeus tenham leis e critérios e referenciais mais protetivos, enquanto aqui no Brasil isso seja colocado de forma mais branda e muito mais permissiva.”
Na avaliação da representante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Shirleyde Alves dos Santos, a saída é aumentar a produção agroecológica, que descarta venenos nas plantas e antibióticos nos animais. Ela questiona o discurso do agronegócio. “Nas condições atuais, com uso excessivo de veneno, o Brasil possui quase 20 milhões de pessoas passando fome. E quase 117 milhões em situação de insegurança alimentar”. Ao ser questionada sobre o volume produzido, ela explica que há uma compensação: “A agroecologia não provoca o processo de degradação, como ocorre com as lavouras de milho, trigo, arroz e soja impactadas pelo agrotóxico, onde muitas vezes a produção entra em colapso após um início de ganhos, porque não são modelos sustentáveis. Na via agroecológica, esse esgotamento e perda da biodiversidade são substituídos pela proteção da terra e pela produção paulatina, que propicia novos plantios.”
A agroecologia, que já conta com a produção de cerca de 2,5 milhões de famílias em todo o mundo, busca a sustentabilidade econômica e ecológica dos agrossistemas, estimula o empoderamento dos agricultores e agricultoras e sua organização e se baseia no circuito curto de comercialização, ou seja, da horta ao consumo com o menor gasto de recursos e logística possível.
A senadora Zenaide Maia (Pros-RN) reforçou a necessidade de mudar a forma de produzir alimentos no país, adequando-a à saúde das pessoas e do meio ambiente. Ela defende a ampliação da área plantada no regime agroecológico e questiona os dividendos obtidos com o agronegócio.
“Que política de alimentação é essa? Um dos maiores produtores e exportadores de grãos e proteína animal, usando nosso solo, nossa água, eles exportam tudo, zero de imposto, não sobra nada para a educação, para o SUS, que é para onde vão as pessoas esmagadas com a quantidade de agrotóxicos, e deixam 20 milhões de brasileiros que hoje ainda não se alimentaram. Não dão conta de alimentar o povo, exportam tudo, não dão conta de abastecer o mercado interno e os preços dos alimentos estão aí, as pessoas não conseguem comer nem osso”, sustentou Zenaide Maia, para quem o PL do Veneno “nem deveria ser pautado. Qual a urgência de fazer com que agrotóxicos danifiquem ainda mais a vida dos brasileiros e brasileiras, mesmo quando estão na fase intrauterina?”
No encerramento da audiência, o senador Humberto Costa exibiu um vídeo da chefe de cozinha Paola Carosella, argentina radicada no Brasil que, na mesma linha da senadora potiguar, pediu o inverso do PL do Veneno: uma lei que regule o uso e a comercialização desses produtos e regras que protejam a terra, a saúde das pessoas e do meio ambiente.
“Esse projeto de lei vai cimentar ainda mais um modelo que produz commodities em grande escala para exportação, riqueza de poucos e empobrecimento de muitos. O Brasil está passando fome porque não está plantando comida, o Brasil precisa reforçar a agricultura familiar, dar terra para o povo e plantar comida para que o brasileiro tenha comida fresca no prato. Não a esse projeto de lei”, encerrou a também empresária e apresentadora de TV.