Regina: “Vai ser importante fazer essa CPI para mostrar que a intolerância tem consequências, tem punição”Líderes de candomblé, umbanda e outras expressões religiosas de matriz africana cobraram providências na Comissão de Direitos Humanos (CDH), nessa quarta-feira (16), contra a crescente onda de intolerância religiosa no Brasil. Houve inclusive pedidos para abertura de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar atos de violência contra locais de culto e seguidores de religiões afro-brasileiras.
O primeiro a defender a instalação de uma CPI foi o babalorixá Joel de Oxaguiãn, de Planaltina (GO). Antes, ele lembrou que desde 1890, com a fundação da República, o Estado brasileiro passou a ser laico, com garantia de liberdade de religião. No entanto, disse, que alguns segmentos estão se esquecendo disso e usando a força, como se tivessem “procuração de Deus”, para tentar impor a todos, as suas crenças religiosas.
“É preciso uma CPI para que se tomem providências imediatamente, porque estão ficando cada vez mais graves os ataques às nossas religiões”, disse Joel de Oxaguiãn.
Para o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que propôs a audiência, está claro que há no País um clima crescente de intolerância contra diversos credos, mais acentuadamente contra os cultos afro-brasileiros. A seu ver, é preciso “dar um basta” e deixar claro que o Brasil não aceita conviver com expressões de ódio e violência religiosa.
“O que fizemos hoje foi mostrar solidariedade aos que estão sofrendo mais diretamente no momento. Depois, poderão ser judeus, evangélicos ou ateus que sequer vão poder andar nas ruas”, disse o senador.
Sobre a possibilidade de uma CPI, salientou, em entrevista, que não depende apenas dele, mas de pelo menos 27 senadores. De todo modo, adiantou que debaterá o assunto com os colegas, considerando que poderia ser apropriado abordar a questão de intolerância de modo abrangente, não apenas contra os cultos de matriz africana.
A senadora Regina Sousa (PT-PI) pediu uma atenção maior ao tema nas escolas, para que as crianças possam aprender a conviver com as diferenças e não adotem o caminho da intolerância.
“Esse debate precisa ser ampliado, precisa estar nas escolas. Vai ser importante fazer essa CPI para mostrar que a intolerância tem consequências, tem punição. No Piauí temos crianças que não querem mais ir para as escolas porque são chamados de macumbeiros”, exemplificou.
Ocorrências
No entorno do Distrito Federal, dois terreiros já foram atacados nos últimos dias. O episódio mais grave foi em Santo Antônio do Descoberto (GO), onde o templo ficou destruído depois de incêndio criminoso. Em Águas Lindas (GO), homens usaram uma caminhonete para derrubar o portão na entrada do espaço. Na terça-feira (15), os agressores voltaram e atearam fogo. Até agora, ninguém foi preso.
Babazinho de Oxalá, do terreiro em Santo Antonio do Descoberto, contou que um mês antes os criminosos já haviam invadido o espaço, quando quebraram tudo.
Foi ainda lembrado, entre outros casos, o da menina Kayllane Campos, 11 anos, vítima de agressão no Rio de Janeiro, em junho. Vestida com a indumentária de culto, ele voltava para casa depois de participar de um culto de candomblé quando foi atingida com uma pedrada na cabeça. Depois disso, líderes religiosos realizaram na capital fluminense um ato contra a intolerância religiosa e em apoio à menina.
Adna Santos de Araújo, também conhecida como Mãe Baiana, que representava a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, informou que o órgão já recebeu registros de 218 denúncias de atos de violência contra espaços de culto de religiões de matriz africana.
Segundo ela, a procuradoria da secretaria está acompanhando todas as ocorrências, buscando garantir que sejam apuradas e os responsáveis punidos. A seu ver, os atos não são apenas de violência, mas também denotam racismo e devem ser enquadrados legalmente desse modo, como crime inafiançável.
Cantos e tambores
A audiência foi marcada pelos sons de tambores e cânticos dedicados aos orixás nas cerimônias nos terreiros. Antes de sua manifestação, a Mãe Railda Rocha Pitta, de Brasília, acompanhada pela plateia formada de “povo de santo”, entoou a saudação a Xangô, que tem nas quartas-feiras o seu dia. Contou sua história e propôs reflexões sobre a tolerância, sempre citando simbologias relacionadas às divindades do candomblé.
“É preciso mudar este cenário de ódio para uma realidade de amor. Aprendam com Oxum, a deusa das águas doces e a maior expressão de amor: é preciso que a vida seja doce como mel e vivificante como a água, que é essencial para a nossa existência”, afirmou.
O senador Paulo Paim (PT-RS), que preside a CDH, observou que o natural seria cada brasileiro estar tranquilo e em paz para praticar a religião escolhida, qualquer que seja. No entanto, diante dos casos de intolerância, disse que não adianta apenas “chorar sobre o sangue derramado”, mas estimular o debate e fortalecer o respeito à diversidade.
“A liberdade de culto e religião é cláusula pétrea da nossa Constituição. É necessário defender o direito de todos a manter sua identidade e as suas raízes”, reforçou.
Na visão do Babá Adailton Moreira Costa, do Rio de Janeiro, hoje é necessário falar não apenas em “tolerância”, a seu ver uma palavra que está “em cima do muro”. Antes de tudo, disse ele, deve haver respeito à tradição religiosa de cada um. Para o líder religioso, a violência de cunho religioso ocupa o mesmo contexto do racismo, da homofobia e da violência sexual e de gênero.
Com emoção, outro babalorixá presente à audiência, Pecê de Oxumaré, de quem partiu a sugestão da audiência ao senador Cristovam, cobrou respeito ao “povo de santo”, lembrando os que fogem disso negam a Bíblia que dizem seguir.
“Nós temos respeito e amor: respeitamos a natureza, o outro e abrimos nossas portas sem perguntar quem está chegando e sem pedir antecedentes criminais. Para qualquer um que chegar, a porta estará sempre aberta”, disse.
Ecumenismo
O frei David Santos, da Educafro, entidade que luta contra o racismo e desigualdade social, informou que estava ali como representante de uma entidade que cultua o ecumenismo. Celebrou a presença do Papa Francisco à frente da Igreja, salientando que o líder católico levou adiante o compromisso com o diálogo interreligioso. Depois, o frei criticou a postura de segmentos evangélicos que estimulam o preconceito contra religiões de matriz africana. A postura desses grupos não representa verdadeiramente os evangélicos.
“Essa postura não representa as expressões evangélicas; essas são pessoas desequilibradas que representam pequenos grupos”, afirmou.
Pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR), Alexandre Brasil Carvalho detalhou as ações e mecanismos do Plano Nacional de Direitos Humanos contra a intolerância Religiosa. Citou o aperfeiçoamento do sistema de ouvidoria e a produção de relatórios sobre casos de intolerância e preconceito. Outra ação é estimular fóruns permanentes de diálogo interreligoso nos estados e municípios, hoje já existindo sete organizações do tipo em todo o país.
Reivindicações
Além da proposta para a instalação da CPI, os participantes da audiência apresentaram outros pedidos à comissão, como um apelo para envio de carta ao governador de Goiás, Marconi Perillo. A intenção é pedir providências para que sejam investigados os ataques a terreiros nas cidades goianas no entorno do DF.
Foi também solicitada negociação com o governador do DF, Rodrigo Rollemberg, para que estenda aos terreiros as garantias de concessão de áreas, como já é feito em favor de outras religiões, para que edifiquem seus templos. O advogado Bernardo Sukennik sugeriu também que seja solicitado à Ordem dos Advogados do Brasil, no nível nacional e DF, a criação da Comissão de Liberdade Religiosa.
Com informações da Agência Senado