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Servir cafezinho na Casa Branca

O governo Bolsonaro não se cansa de atirar contra os interesses do país, esporte no qual revela ter grande poder de fogo e precisão cirúrgica
Servir cafezinho na Casa Branca

Foto: Reprodução

O governo Bolsonaro não se cansa de atirar contra os interesses do país, esporte no qual revela ter grande poder de fogo e precisão cirúrgica.

Há poucos dias, em Davos, o ministro do ultraneoliberalismo pinochetista, Paulo Guedes, anunciou que o Brasil vai aderir ao Acordo de Compras Governamentais da OMC, mais conhecido por seu nome inglês Agreement on Government Procurement (GPA).

Trata-se de um acordo plurilateral que foi negociado durante a Rodada Uruguai, concluída ao final de 1994.

Embora tenha sido negociado no âmbito da OMC, não é um acordo de adesão compulsória para seus membros. Entra quem quiser, por sua conta e risco. Entrando no acordo, o novo país membro se compromete a abrir seu mercado de compras governamentais para as empresas dos outros países membros, em condições de igualdade e em bases não discriminatórias.

Durante a Rodada Uruguai, os principais propositores do acordo, os EUA e a atual União Europeia, pressionaram muito os países em desenvolvimento para que a ele aderissem. Não obtiveram grande êxito.

Até hoje, o Acordo de Compras Governamentais tem poucos membros. Vinte, ao todo. Ou quarenta e sete, se desmembramos a União Europeia, que inclui, neste ano, 27 países. A OMC tem 164 membros, contados sem desmembrar a União Europeia. Assim, a taxa de adesão ao GPA é, atualmente, bastante baixa (8,2%).

Entre os atuais 20 membros oficiais, são pouquíssimos os países em desenvolvimento. Uns 4 ou 5, como Armênia, Moldova, Montenegro e Ucrânia. Muito embora alguns países formalmente em desenvolvimento, como a China, estejam em processo de adesão ao GPA, a tendência é que a participação desses países no acordo permaneça ainda extremamente baixa.

Pudera. As compras governamentais se constituem num poderoso instrumento de estímulo às empresas locais, que tende a gerar empregos para os cidadãos nacionais e gerar tecnologia e inovação. Países em desenvolvimento, que têm, em geral, pouca competitividade internacional, especialmente na área industrial, evitam abrir mão desse poderoso mecanismo de incentivo ao desenvolvimento nacional.

Conforme o estudo intitulado Foreign Sourcing in Government Procurement, elaborado, em 2019, pelo United States Government Accountability Office (GAO), a pedido do Congresso dos EUA, trata-se de um mercado mundial de cerca de US$ 4 trilhões. Não é toa, portanto, que os atuais membros do GPA, como EUA, União Europeia, Japão, Coreia do Sul, Suíça, Noruega etc., pressionem em países em desenvolvimento a entrar no acordo.

Entretanto, os dados do estudo citado demonstram que a abertura do mercado de compras governamentais é um péssimo negócio para países em desenvolvimento.

Centrado no GPA e no NAFTA, que também abriu o mercado de compras governamentais entre suas Partes, o estudo inclui dados pormenorizados sobre o comércio de compras governamentais entre os EUA e a União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, o Canadá, a Noruega e o México.

Pois bem, o estudo mostra que, em 2015, os EUA concederam cerca de US$ 1 milhão em compras governamentais do governo central para empresas mexicanas. Em contrapartida, o governo central do México concedeu ao redor de US$ 300 milhões em compras governamentais para empresas norte-americanas. A discrepância é brutal. Para cada dólar concedido pelos EUA, o México concedeu 300.

Nos casos da União Europeia, Japão e Coreia do Sul, a situação se inverte: os EUA são deficitários. Com a União Europeia, em especial, o déficit do governo central dos EUA é expressivo. Naquele mesmo ano (2015), o governo central dos EUA teria comprado cerca de US$ 2, 8 bilhões da UE, ao passo que os governos centrais da União Europeia teriam adquirido apenas US$ 300 milhões de empresas dos EUA. Há, contudo, uma explicação razoável para tal diferença. É que cerca de 80% das compras governamentais feitas pelo governo central dos EUA de empresas estrangeiras são localizadas no exterior. Boa parte dessas compras são efetuadas pelas inúmeras bases militares e outras instalações que os EUA têm no exterior, notadamente na Europa.

Mesmo assim, dos quase US$ 291 bilhões que o governo central dos EUA comprou em 2015, somente US$ 16,5 bilhões (cerca de 6%) foram de bens e serviços importados.  No cômputo das compras governamentais totais, que incluem, além do governo central, também os governos estaduais e locais, esse percentual de importados sobe para cerca de 9%. No caso do México, porém, esse mesmo percentual é de 18%, o dobro dos EUA.

Outro estudo que também não recomenda a abertura do nosso mercado de compras governamentais, segundo nosso ponto de vista, é o intitulado “O MERCADO DE COMPRAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRO (2006-2017): MENSURAÇÃO E ANÁLISE (2019), de Cássio Garcia Ribeiro e Edmundo Inácio Júnior, dois pesquisadores do IPEA.

Segundo tal estudo, o mercado de compras governamentais brasileiro tem a mesma envergadura do mercado dos países da OCDE. No período considerado (2006-2017), as compras governamentais responderam, em média, por 12,5% do PIB do Brasil, um número bastante expressivo. Em 2014, esse mercado, incluindo União, Estados e Municípios, ascendeu a R$ 759 bilhões, ou 13,1% do PIB do Brasil.

Uma constatação importante do estudo diz respeito à expressiva participação da Administração Indireta, particularmente das estatais, nesse mercado. Assim, no período estudado, a Administração Indireta da União respondeu por 6,8% das compras governamentais, sendo que apenas a Petrobras respondeu por 4,1%.

Uma segunda constatação importante, vinculada à primeira, tange à queda expressiva do mercado brasileiro de compras governamentais, nos últimos anos. A participação desse mercado no PIB caiu de 14,5%, em 2012, para somente 10,5%, em 2016. Saliente-se que essa queda se deu num quadro de expressiva contração do PIB, o que indica retração brutal nessas compras. Caso a participação desse mercado no PIB tivesse permanecido no mesmo nível de 2012, ele teria gerado compras de R$ 907 bilhões, em 2016. Contudo, naquele ano tais compras ascenderam à apenas R$ 633 bilhões.

Partindo dessas constatações, o estudo do IPEA faz algumas justas ponderações.

O estudo, em suas conclusões, assinala que “partindo da premissa de que o Estado deve assumir um papel indutor do desenvolvimento do país, salta aos olhos a importância da adoção de políticas pelo governo brasileiro para rescindir ou reverter essas tendências perversas (de queda nas compras governamentais). A partir da literatura explorada neste texto e dos dados apresentados, pode-se afirmar que a política de compras governamentais poderia assumir um importante papel na recuperação da economia do país, pelo seu enorme potencial anticíclico”.

O estudo também afirma que “comprova-se a importância do fortalecimento dessas empresas, por representarem peças fundamentais na engrenagem do desenvolvimento do país. Tal fortalecimento passaria, por exemplo, pela realização de esforços com vistas a evitar quedas bruscas nas compras levadas a cabo por tais empresas, contribuindo, paralelamente, com a pujança da economia brasileira, dados os efeitos de encadeamento dessas aquisições”.

Ora, o ultraneoliberalismo pinochetista do governo do capitão está fazendo exatamente o contrário do recomendado pelos técnicos do IPEA. Está fragilizando cada vez mais as empresas estatais, eliminando o papel indutor de desenvolvimento do Estado e abrindo o estratégico mercado de compras governamentais para empresas estrangeiras, justamente num momento em que a desindustrialização do Brasil assume contornos dramáticos.

Há ainda um sério agravante nessa adesão do Brasil ao GPA, que ninguém comentou. É que o artigo V do GPA assegura, aos países em desenvolvimento, algumas regras benéficas, seguindo o princípio do tratamento especial e diferenciado. Dessa forma, países em desenvolvimento podem, por exemplo, ter acesso imediato aos mercados de compras governamentais de países desenvolvidos, mas podem, de outro lado, preservar seus mercados por um tempo (até 3 anos) para poderem se adaptar às novas regras.

Acontece que o preclaro governo brasileiro, para agradar o Messias do Ocidente, Donald Trump, renunciou ao tratamento especial e diferenciado na OMC. Portanto, entraremos no GPA sem a relativa proteção assegurada pelo seu artigo V.

O pior, contudo, é a justificativa ideológica e sem sentido para que o Brasil adira ao GPA. Trata-se, segundo o Chicago Old Man, de uma iniciativa para evitar a corrupção.

Ora, essa é uma declaração de um “viralatismo” insuperável e patético. Tal declaração pública equipara-se ao espantoso vídeo do senhor Alexandre Garcia, recomendado efusivamente pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, no qual ouve-se, para espanto dos não oligofrênicos, que o Brasil “daria certo”, em pouco tempo, caso a população brasileira fosse trocada pela população japonesa. O problema do Brasil, seria, por conseguinte, de acordo com esses discípulos de Gobineau, o seu povo, essa gente mestiça, preguiçosa e corrupta.

No mesmo diapasão racista, para Guedes, um notável patriota, a participação de pulcras empresas estrangeiras nas compras governamentais evitaria a corrupção das sujas empresas nacionais.

Bom, sinto decepcioná-lo, mas não é bem assim. Empresas de países desenvolvidos como Siemens, Halliburton e a Alston, muito querida por tucanos paulistas, foram recentemente flagradas em gigantescos casos de corrupção.

Na realidade, tudo isso é desculpa esfarrapada para abrir o mercado brasileiro à concorrência externa.

Suprema ironia, o governo do Messias do Ocidente, liderança inconteste e única do governo vira-lata, já anunciou que deverá se retirar do GPA, caso suas regras não sejam revistas. Trump está preocupado com a possível incorporação da China ao acordo.

Há gente que, bem ou mal, pensa nos empregos de seus cidadãos. Há gente que não.

Há também gente que não pensa at all.

E há gente que sonha em servir cafezinho na Casa Branca. Sonho que poderá se concretizar com o GPA.

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