“Em uma irônica troca de sinais nas relações de força, eram os Estados Unidos quem vinham tentando convencer o Brasil a manter a visita. Obama telefonou na segunda-feira à noite para a presidente Dilma Rousseff para tentar convencê-la a mudar de opinião, sem sucesso.” BBC-Brasil
A decisão da presidenta Dilma de adiar a visita de Estado aos EUA foi inteiramente acertada. Com efeito, não se pode construir uma parceria estratégica, como o Brasil pretende construir com os EUA, sem um grau mínimo de respeito mútuo e confiança recíproca. Respeito e confiança que os EUA não demonstraram ter para com o Brasil, no grave e ainda mal-explicado caso da espionagem ilegal da própria presidenta e de empresas e cidadãos do país.
Em outros tempos, não muito remotos, essa resposta firme e serena do Brasil talvez fosse impensável. Naqueles idos, quando se praticava uma política externa, assim digamos, menos altiva e mais genuflexa, não era aconselhável contrariar os desígnios insondáveis da única superpotência mundial. Ainda que se tivesse razão, como a tinha, sem dúvida, e em toneladas, o embaixador Bustani, sacrificado no altar das posturas rasteiras que caracterizam as espinhas vergadas dos apequenados.
Não, definitivamente não. Naquele inglorioso passado recente, a visita teria sido mantida, jamais posta em dúvida, e as autoridades talvez já estivessem a salivar pensando em seu lugar à mesa da Casa Branca, demonstrando o indefectível reflexo condicionado adquirido em décadas de amestrada subserviência. O chanceler, em ansiosa visita precursora, talvez já estivesse a desfilar no aeroporto de Washington. Talvez descalço.
Felizmente, os tempos, como soem acontecer com os tempos, mudaram. Mudou, sobretudo, o Brasil. Mesmo o mais rigoroso e cético observador das relações internacionais hoje reconhece que o Brasil mudou inteiramente de patamar, no cenário mundial. Contribuiu muito para essa ascensão do país aquele presidente monoglota, o qual, segundo diziam os néscios ilustrados, não podia governar o Brasil porque não falava o idioma do bardo de Stratford-upon-Avon.
Bastou, ao que parece, o doce aroma da última flor do Lácio. Hoje, não somos superpotência que se excede no uso unilateral da força, mas já somos soft power que exerce considerável influência abusando do exemplo, da negociação e do respeito ao multilateralismo. De fato, o Brasil é atualmente um país cortejado e respeitado, que exerce um papel positivo e conciliador na ordem mundial com absoluta transparência. Para saber o que o Brasil quer, basta conversar. Microfones ocultos são desnecessários, bastam ouvidos atentos e algum cérebro. A coisa só muda de figura quando se trata da privacidade de autoridades, empresas e cidadãos. Nesses casos, é necessário recorrer, sob a ubíqua supervisão da NSA, à violação de direitos assegurados em nossa Constituição e em convenções internacionais.
Há, entretanto, coisas que parecem que não mudam nunca. Uma delas é a política externa norte-americana. Obama, que muito prometera, nada mudou, de fato. Desde Bush até ele há uma monocórdia e trágica sequência de intervenções desastradas, insufladas por um amplo desconhecimento do mundo e pelo desprezo monumental por outros países, inclusive aqueles que são, ou poderiam ser, parceiros estratégicos. Essa insistência autista no erro parece extremamente sólida. Tão sólida que nem se desmancha com os novos ares do mundo, que não sopram mais numa só direção.
Não obstante, a política do ataque preventivo está suscitando dúvidas, uma vez que tem se mostrado demasiadamente eficaz. Ela consegue prevenir até mesmo a paz e a estabilidade onde é bombasticamente aplicada. Com isso, a própria opinião pública norte-americana, a única que para eles conta, vem se mostrando mais cética, em relação a novas aventuras bélicas. Quem sabe o oxigênio Made In Usa consiga o que os novos ares do mundo não conseguiram.
Outra coisa que parece infensa à mudança é a cabeça de alguns opositores nacionais, que não absorveram o cambio no patamar externo do Brasil. Com efeito, setores da oposição criticaram duramente a decisão da presidenta Dilma de adiar a viagem aos EUA. Parecem não ter entendido a dimensão da agressão sofrida por toda a nação brasileira com o episódio da espionagem. Parecem ter entendido menos ainda que o Brasil de hoje, ao contrário do Brasil de antanho, não pode reagir somente de forma retórica ante tal agressão, ganindo, em inglês fluente, como reles street dog. O Brasil de hoje exigiu solução efetiva para o grave problema. A solução não veio, o Brasil não vai.
E não se trata de “marketing eleitoral”, uma vez que isso não tem nenhuma repercussão em eleições, a não ser na imaginação de políticos provincianos, mas sim de posição de estadista, pois essa questão tem, com certeza, consequências geopolíticas significativas.
Certos opositores, além de terem muita dificuldade em entender as diferenças entre o Brasil de hoje e o Brasil de outrora, não conseguem distinguir entre questões de Estado e questões de governo. Assim, pretendendo atacar o governo, negam apoio ao Brasil num embate externo.
Nos EUA, tal certamente não acontece. Ante qualquer conflito externo, republicanos e democratas costumam se unir em rígida formação bipartisan. Coisas de país acostumado a agir com desembaraço no plano externo. No Brasil, ao contrário, qualquer rusga externa serve de pretexto para que opositores e “especialistas” sem visão do mundo se omitam na defesa do país, com a finalidade de atacar o governo. Coisas de forças políticas com complexo de vira-lata.
As confusões não terminam por aí. Alguns setores da oposição não conseguem também distinguir as principais ameaças ao interesse nacional. Assim, há aqueles que acham que a presidenta, num “gesto de submissão”, preferiu enfrentar um “presidente fraco” (Obama) a defender o país contra Evo Morales, o chefe daquela grande hiperpotência que ameaça seriamente o mundo com nacionalizações de algumas jazidas de gás e com um sistema judiciário que cisma em perseguir senadores corruptos.
Mas isso já é coisa de gente que, cegada pelo desespero político e o ódio ideológico, perdeu a noção e a razão. Outro sinal dos tempos.