A ocasião dos 25 anos de criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é boa oportunidade para a avaliação das mudanças que esse modo inovador de prestar assistência trouxe para a população brasileira. As imagens que mostram problemas em hospitais e postos de saúde, recorrentemente na mídia, são conhecidas e têm relação direta com o subfinaciamento crônico. Mas é inegável que essa realidade convive simultaneamente com outra, de luta e de conquistas. Houve, nesse um quarto de século, desde a promulgação da Constituição Federal, avanços evidentes.
A visão humanitária das políticas de saúde universais e gratuitas resultou em ganhos para a sociedade que se incorporaram ao imaginário do brasileiro. Antes da existência do SUS, para receber atendimento, o cidadão era obrigado a apresentar a carteira de trabalho a fim de comprovar o vínculo com o hoje extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, o Inamps. Restavam, às pessoas que não atendiam esse requisito, duas alternativas: pagar ou buscar socorro nas Santas Casas. Hoje, independentemente de qualquer exigência, a assistência pública de saúde está garantida a todos, por lei.
O entendimento da saúde como direto universal, integral e gratuito trouxe à sociedade brasileira avanços reconhecidos internacionalmente. Entre 1991 e 2010, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do País melhorou 47,8%. Esse avanço reflete conquistas na educação, na renda, na longevidade, na saúde, claro, e tem forte relação com a queda da mortalidade infantil. Em 2013, metade dos municípios do Brasil apresenta índice de mortes no primeiro ano de vida menor que 17 por mil nascidos, meta prevista pelos Objetivos do Milênio, da Organização das Nações Unidas, para 2015.
Dentre as políticas universais de saúde, o Programa Nacional de Imunizações garante que anualmente mais de 300 milhões de doses de vacinas, soros e imunoglobulinas cheguem aos cidadãos – hoje 96% das vacinas que o SUS distribui são feitas no Brasil ou estão em processo de transferência de tecnologia. Esse esforço permitiu a erradicação da poliomielite e da varíola e resultou na eliminação, entre os moradores não viajantes, da circulação de vírus do sarampo e da rubéola. Houve também queda acentuada nos casos e incidências das doenças imunopreveníveis – meningites, difteria, tétano neonatal.
O Sistema Nacional de Transplantes, gerenciado pelo Ministério da Saúde e pelos estados e municípios, é também motivo de orgulho. Em uma década, o Brasil aumentou em 118% o número dessas cirurgias, de 1.722, em 2002, para 24.473 em 2012. Isso fez com que, nesse período, o investimento quadruplicasse para chegar a R$ 1,4 bilhão. E atualmente 95% dos transplantes no País são feitos por meio do SUS. Com a maior oferta de serviços, melhorias para a captação de órgãos e o aumento do número de cirurgias, a quantidade de pessoas aguardando por um transplante caiu 40% entre 2008 e 2012, de 64.774 para 38.759.
Nas manifestações de junho último, estava presente em cartazes e refrãos a reivindicação de melhoria dos serviços públicos: educação, transporte e também saúde. O governo federal intensificou esforços para que todos carentes de serviços médicos recebessem atendimento digno, como prevê a Constituição. Como evidência desse empenho, o Programa Mais Médicos busca levar esses profissionais às periferias das grandes cidades e aos municípios do interior. Agora, o Congresso Nacional leva adiante os entendimentos para a adoção de um patamar mínimo do Orçamento Geral da União para investimento na saúde.
Pela sua origem, porque é resultado de uma grande mobilização social, o SUS, nos seus 25 anos de existência, contribuiu para incentivar a discussão da saúde pública, inclusive com a formação de fóruns onde o debate é intenso. Hoje, as comissões intergestores e os conselhos de saúde, municipais e estaduais funcionam com autonomia e dão legitimidade às ações governamentais porque deliberam, determinam, fiscalizam. Sim, os problemas existem, mas a população tem a oportunidade de participar da busca por soluções. E isso está garantido por lei.
No Senado Federal, tive a oportunidade de, há dois anos, relatar o projeto de lei que finalmente institucionalizou as comissões de intergestores. Essa proposição, sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2011, é fundamental para garantir a legitimidade das instâncias que definem os destinos do SUS porque garante a descentralização da representatividade no sistema. Nesses fóruns, representantes dos governos federal, estadual e municipal definem diretrizes para a organização das redes de saúde.
Na condição de ministro da Saúde do Governo Lula, levei à frente, entre 2003 e 2005, iniciativas que resultaram em avanços totalmente incorporados ao SUS: criação de duas secretarias que hoje integram o organograma da pasta, a de Gestão Estratégica e Participativa e a de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde; a inclusão efetiva da atenção odontológica no SUS, o Programa Brasil Sorridente; a ampliação do fornecimento de medicamentos por meio da Farmácia Popular; e, finalmente, a implantação de uma das políticas mais universais alcançadas pelo SUS, o Samu.
Seguem os esforços para que o SUS funcione, com todo seu potencial, como a importante ferramenta de inclusão social que pode ser. Hoje, mais de 150 milhões de brasileiros dependem exclusivamente dos hospitais e postos de saúde públicos para terem atendimento – bom que se saiba, o Brasil tem o sistema de saúde mais abrangente do mundo, tanto em procedimentos quanto em número de pessoas assistidas. Apesar da criatividade e da dedicação de todos os gestores, a saúde no Brasil continua com problemas, inclusive estruturais: o acesso equânime, os déficits na gestão, a falta de profissionais e, principalmente, o subfinanciamento.
Governo federal, Congresso Nacional e movimentos sociais organizados, por meio do Saúde + 10, se dedicam à busca de mais recursos para a saúde pública brasileira. Mas é preciso ir adiante, se faz premente aperfeiçoar a gestão. Por isso apresentei no Senado projeto para a criação da Lei de Responsabilidade Sanitária – proposição idêntica, de autoria do Deputado Doutor Rosinha, tramita na Câmara dos Deputados. A intenção é resolver questões como fiscalização e controle, principalmente dos recursos e dos contratos de ação pública.
Há, sim, como pode ser visto, uma crise de imagem do SUS. E isso se agrava com o crescimento da capacidade de consumo do brasileiro – basta ver como aumentaram as aquisições de contratos de planos de saúde, uma prova da demanda da sociedade por uma saúde melhor. Essa situação traz à tona uma questão: mais do que nunca é preciso debater com profundidade a interface entre o sistema público e o sistema suplementar de saúde. Quero propor a criação de uma comissão especial no Senado para debater esse assunto e espero contar com a colaboração da academia.
O artigo acima foi originalmente publicado no portal Brasil 247, no dia 19/11/13. Humberto Sérgio Costa Lima é médico, professor universitário e jornalista. Foi ministro da Saúde entre 2003 e 2005 e, em 2010, se elegeu o primeiro senador do PT de Pernambuco.