Em artigo, Marcelo Zero, assessor técnico da liderança do PT no Senado, explica que a decisão do governo brasileiro de perdoar a dívida US$ 897 milhões de alguns países africanos na mais é do que a adesão do Brasil a um movimento internacional de perdão e renegociação das dívidas de países pobres altamente endividados. O movimento foi lançado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, em 1996.
O FMI apresenta resultados expressivos na relação entre o oumento do asto para o combate à pobreza e a redução nos pagamentos dos serviços da dívida em países pobres em países perdoados. “Em Moçambique, por exemplo, o perdão de dívidas possibilitou a extinção de cobranças de matrículas em escolas públicas e a construção de novas escolas. Em Zâmbia, um país muito afetado pela AIDS, o alívio financeiro possibilitou a implantação de programas de distribuição de drogas antirretrovirais”.
Em 2000, por exemplo, o governo na época autorizou abatimento de 95% dívida de Moçambique e, com a economia, o dinheiro foi investido na educação, saúde, água, saneamento básico e infraestruturas.
Em resposta à oposição que criticou a decisão do governo brasileiro, cai por terra a alegação de que a medida seria desnecessária, pois o PIB da África vem crescendo mais do que o próprio do Brasil. Esse crescimento, além de desigual, parte de um patamar baixo em função da pobreza e exclusão social.
Veja íntegra do artigo:
Alguns Esclarecimentos Sobre o Perdão e a Renegociação da Dívida de Países Pobres Altamente Endividados
Marcelo Zero*
I. O recente anúncio, feito pela presidenta Dilma Rousseff, de que o Brasil perdoaria ou renegociaria as dívidas de alguns países africanos, num montante de cerca de US$ 897 milhões, suscitou um festival de informações equivocadas na imprensa conservadora.
II. Sem fazer qualquer pesquisa básica sobre o assunto, alguns “formadores de opinião” divagaram, com irresponsabilidade, sobre essa decisão “absurda” e “eleitoreira” do governo brasileiro, que prejudica os contribuintes.
III. Na imaginação fértil desses senhores, a iniciativa brasileira, aparentemente única no mundo, foi apenas motivada pelo desejo de favorecer as empreiteiras que têm interesses na África, de olho nas eleições de 2014. Com essa atitude, o Brasil beneficiaria também algumas ditaduras africanas e suas castas de cleptocratas.
IV. Pois bem, a iniciativa brasileira, longe de ser uma decisão unilateral e isolada, na realidade representa uma adesão do Brasil a um movimento internacional, já bastante consolidado, de perdão e renegociação das dívidas de países pobres altamente endividados.
V. Esse movimento internacional foi lançado pelo FMI e o Banco Mundial, dois organismos mundiais bastante conservadores, em 1996. Esses dois organismos chegaram à conclusão, bastante óbvia, por sinal, de que muitos países pobres não tinham condições de pagar as suas enormes dívidas (proporcionalmente aos seus PIBs) e, ao mesmo tempo, realizar os imprescindíveis esforços para superar seus gravíssimos problemas sociais. Tratava-se de dívidas insustentáveis, que não seriam, na realidade, recebíveis naquelas condições.
VI. Surgiu, assim, a Heavily Indebted Poor Countries Initiative (HIPC- Iniciativa para os Países Pobres Altamente Endividados), que rapidamente ganhou corpo. Em 1999, essa iniciativa foi ampliada, e o FMI e o Banco Mundial passaram a estabelecer uma relação entre o perdão das dívidas e a realização de investimentos para aliviar a pobreza nos países beneficiados.
VII. Em 2005, a HIPC foi suplementada pela Multilateral Debt Relief Initiative (MDRI) que, com o apoio da ONU, passou a contribuir para acelerar a consecução dos Objetivos do Milênio.
VIII. Também em 2005, essas iniciativas receberam o decidido apoio do G8, cujos governos tomaram decisão conjunta de perdoar as dívidas de muitos países endividados.
IX. Além do Banco Mundial e do FMI, outras instituições financeiras internacionais também aderiram aos esforços, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Fundo de Desenvolvimento Africano e o chamado Clube de Paris. Muitos outros governos também aderiram às iniciativas. Também houve campanhas que mobilizaram as sociedades civis de países mais avançados, como a famosa campanha do Jubileu de 2000.
X. O FMI, que monitora de perto essas iniciativas e seus resultados, estima que o perdão de dívidas já ascenda a cerca de US$ 76 bilhões, com grandes benefícios para população dos países beneficiados.
XI. No quadro a continuação, pode-se observar claramente a correlação entre esse perdão de dívidas e os investimentos sociais nesses países.
Relação Entre o Aumento do Gasto para o Combate à Pobreza e a redução nos Pagamentos dos Serviços da Dívida em Países Pobres
1. Ainda de acordo com o FMI, os resultados em muitos países foram bastante expressivos. Em Moçambique, por exemplo, o perdão de dívidas possibilitou a extinção de cobranças de matrículas em escolas públicas e a construção de novas escolas. Em Zâmbia, um país muito afetado pela AIDS, o alívio financeiro possibilitou a implantação de programas de distribuição de drogas antirretrovirais.
2. Saliente-se que todos os países que o Brasil beneficiou com o perdão estão na lista do FMI como países elegíveis para se beneficiar das suas iniciativas de alívio financeiro.
3. Portanto, a decisão recente do Brasil não é uma iniciativa isolada. Ela faz parte de um grande esforço internacional, capitaneado pelo FMI, o Banco Mundial e a ONU, com o apoio de muitos governos e outros organismos internacionais.
4. Ademais, ela está inserida numa política de Estado que perpassa governos brasileiros de diferentes matizes ideológicos e políticos.
5. Em julho de 2000, durante visita a Maputo, o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou o perdão 95% da dívida externa de Moçambique. A generosa ação de FHC resultou num impacto de US$ 315 milhões na dívida interna brasileira. Na ocasião, FHC anunciou também o repasse de US$ 1,5 bilhão para várias ações de cooperação no continente africano.
6. Diga-se de passagem, o acordo para formalizar tal perdão só foi efetivamente concluído em 31 de agosto de 2004, sob o governo Lula, por ocasião da visita do presidente moçambicano, Joaquim Chissano, ao Brasil. O presidente moçambicano declarou que os recursos que seriam usados para pagar a dívida com o Brasil seriam agora canalizados no desenvolvimento humano do seu país, nomeadamente nas áreas de educação, saúde, água, saneamento básico e infraestruturas, conforme demandavam o FMI e o Banco Mundial.
7. Esse caso da dívida moçambicana é exemplar de uma política de Estado que perpassa vários governos e que beneficia a população pobre de países muito endividados.
8. A bem da verdade, muitas dessas dívidas já vinham sendo renegociadas desde meados da década de 1990. Por conseguinte, a iniciativa da presidente Dilma nada tem de inédito na política externa brasileira.
9. Alguns argumentam que, como a África vem crescendo economicamente, esse reescalonamento das dívidas é desnecessário. Bom, o FMI e o Banco Mundial discordam. Em primeiro lugar porque, se bem a África como um todo vem crescendo e o Banco Mundial prevê que o continente africano será o de maior crescimento nesta década, tal crescimento é desigual, não beneficiando todas as nações. Em segundo lugar, é preciso considerar que esses países partem de um patamar de desenvolvimento econômico e, sobretudo, de desenvolvimento social extremamente baixos. Apesar do desenvolvimento recente, seus problemas sociais são ainda extremamente graves e suas carências de infraestrutura em todas as áreas são gritantes. Em terceiro, é necessário considerar que esses reescalonamentos dizem respeito a dívidas bastante antigas (as com o Brasil foram contraídas na década de 1970) que nunca foram pagas e que efetivamente jamais serão pagas. Em quarto, a recusa do reescalonamento implicaria jogar fora negociações que se arrastaram, em alguns casos, por quase 20 anos, com apoio de instituições multilaterais.
10. O Brasil, portanto, não vai perder nada com esse reescalonamento. Apenas vai reconhecer uma situação de fato e abrir espaço para novas oportunidades em seu relacionamento com a África.
11. Mas se o Brasil não perde nada, tem muito a ganhar. Nos últimos 10 anos, nossas exportações para os países da África subsaariana, saltaram de US$ 2 bilhões para mais US$ 12 bilhões. Se acrescentarmos o Magreb, tal número ascende a US$ 26,5 bilhões. Além disso, nossos investimentos na África vêm crescendo exponencialmente, beneficiando muitas empresas nacionais. Tudo isso gera muitos empregos e rendimentos no Brasil. Assim sendo, os prejuízos que tivemos com o não-pagamento das dívidas, que teríamos de qualquer forma com ou sem o perdão, já foram mais do que compensados com essa nova relação de proximidade com o continente africano.
12. Entretanto, essa relação ainda promete muito mais. Por isso, países como a China estão investindo pesadamente na África, sem condicionalidades. O Brasil, que tem laços históricos e culturais profundos com o continente africano, não pode ficar de fora dessa nova realidade.
13. Outros ainda argumentam que o Brasil não pode renegociar dívidas de “ditaduras africanas”. Bom, de acordo com a World Audit, organização que faz avaliações periódicas sobre a democracia e os direitos humanos no mundo, apenas 36 nações, entre os 150 países do mundo que têm populações que excedem 1 milhão de habitantes, podem ser consideradas “plenamente democráticas”. Outras 34 podem ser consideradas como em “transição para a democracia”, e vêm fazendo progressos. A maioria (80) é composta por países que simplesmente não são democráticos. A situação é particularmente grave no continente africano, onde a grande maioria dos países, saída em período relativamente recente do domínio colonial, ainda não conseguiu construir instituições políticas estáveis e um verdadeiro Estado-Nação. São, em sua maioria, países ainda dominados por interesses tribais e paroquiais. Conforme avaliação da World Audit, dos 45 países africanos com mais de 1 milhão de habitantes, nenhum é “plenamente democrático” e apenas 10 vêm fazendo progressos para atingir a plenitude democrática. O resto é não-democrático. Portanto, quase 80% dos países africanos podem ser considerados “ditaduras”. Dessa forma, se déssemos ouvidos aos críticos, a exitosa diretriz da nossa política externa de reaproximação à África teria de ser abandonada. O mesmo aconteceria com o Oriente Médio e outras regiões do globo.
14. Ressalte-se que o isolamento desses países e a recusa à cooperação só fariam piorar um quadro que é preocupante. Além disso, o isolamento prejudicaria realmente a inocente e sacrificada população africana. Eventuais ditadores não seriam verdadeiramente afetados.
15. Mas o Brasil, de forma muito acertada, prefere apostar na cooperação, como forma de contribuir para o desenvolvimento, econômico, social e político dessas nações. Por isso, o nosso país vem investimento em acordos de cooperação com muitos países africanos, especialmente no campo técnico e educacional.
Esse novo perdão de dívidas sem insere, assim, no quadro maior de um país que, ciente de suas responsabilidades internacionais, coopera ativamente para a solução dos problemas das nações mais pobres e necessitadas do planeta.