Essa concepção de extermínio da vida dos antagonistas políticos verificada nas manifestações evidencia fagulhas dos ideais fascistas sob a roupagem de combate à corrupção
“Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra.”
(Hannah Arendt)
A democracia é o sistema que pressupõe o dissenso. Significa que a ordem democrática subentende um equilíbrio no conflito. Sua estabilidade não se sustenta nas teses, mas nos mecanismos e procedimentos. Não há democracia sem respeito à singularidade e aos direitos fundamentais que cada instituição e cada cidadão deve ao outro com quem compartilha a vida, seja ela pública ou privada. A essência da democracia, portanto, é a aceitação da pluralidade, o que implica a coexistência pacífica das diferenças.
A liberdade de expressão, por seu turno, é direito imprescindível pelo qual as opiniões devem transitar pelo espaço público com legitimidade. É o direito inalienável e irrenunciável de todo e qualquer indivíduo de manifestar seu pensamento sem censura, tal como posto no artigo 5º da Constituição Federal. Neste sentido se firma como componente crucial das sociedades democráticas, que têm na igualdade e na liberdade seus pilares. Não por acaso, a primeira providência das ditaduras é aniquilar este direito.
Contudo, a liberdade de expressão não é absoluta e não pode se confundir com a leviandade nem ser invocada para a prática de intolerância e preconceito de qualquer ordem. Tampouco pode ser base para a defesa do uso de expressões que caracterizam postura criminosa como a calúnia, a difamação e a injúria ou a incitação à violência.
No dia 16 de agosto último cerca de 700 mil pessoas foram às ruas em várias cidades do país protestar e propor impeachment contra o governo Dilma. Uma manifestação menor que as anteriores, segundo os dados divulgados pelas pesquisas e pela polícia militar dos Estados, e tida por tranquila. Nada obstante, foi sintomático o número de palavras de ordem, faixas e cartazes pedindo intervenção militar, volta à ditadura e desejos de morte aos membros do PT e à Presidenta da República.
Ainda que nos pareçam apenas estúpidos e desinformados, o que esses manifestantes fazem na prática é danificar a democracia. Servem-se dela para destruí-la, disseminando hostilidade e ódio. Ao invés de propostas para o Brasil e luta por reformas, o que levam para as ruas é uma batalha unicamente pelo poder, orientada por objetivos perversos e cínicos.
Para alguns, este comportamento pode parecer uma característica própria do exercício político, mas, de fato, não é senão sua antítese, que aponta para o fanatismo.
A intolerância afasta o indivíduo da percepção do outro como seu igual, que possui direito de expor e defender sua visão de mundo. É ela a primeira postura que abona o ódio. Porta um núcleo inarredável de crenças que produzem identidade coletiva – com ausência de qualquer reflexão – e incentivam práticas discriminatórias.
Nos últimos anos temos presenciado episódios em que pessoas que se enxergam “do bem” cortam orelhas, tiram as roupas, espancam, acorrentam jovens negros a postes, matam em praça pública. Tudo em nome da “justiça” sob o argumento de inoperância estatal.
No mesmo sentido de “justiçamento” há os que atiram bombas em institutos, arrombam a sede de partidos, agridem verbal e fisicamente quem não concorda com seu ponto de vista.
Entre os diversos cartazes coléricos presentes na manifestação do dia 16 de agosto pode-se destacar aquele que talvez seja o mais emblemático. A pergunta no cartaz dizia: “por que não mataram todos em 1964?”. Pois bem, 1964 foi o ano em que tanques tomaram as ruas. O ano que silenciou o país e impôs um pensamento monolítico à base de armas, que arrancou as vozes das gargantas, cerceou todas as liberdades, torturou, exilou e matou milhares de pessoas. Os todos foram homens, mulheres, artistas, intelectuais, estudantes, trabalhadores, pais de família, filhos, que sacrificaram suas vidas justamente pela reconquista da democracia, para que hoje essas pessoas possam estar nas ruas festejando seus desaparecimentos e lamentando que mais não tenham ido com eles. A Presidenta Dilma Roussef foi um daqueles jovens.
Essa concepção de extermínio da vida dos antagonistas políticos, verificada nas faixas, cartazes e falas de muitos indivíduos que participam das manifestações contra o governo, ainda que derive de práticas históricas distintas, evidencia fagulhas dos ideais fascistas sob a roupagem de combate à corrupção. E deveria merecer o repúdio de todos que acreditam ou dizem acreditar na democracia, sobretudo os que atuam no cenário político ou exercem mandato eletivo.
O PSDB – que a propósito também possui em seus quadros membros que foram perseguidos e presos pela ditadura militar – se esmerou em convocar para os atos do dia 16 de agosto. Passado o evento, seus líderes falaram aos jornais e na tribuna do Senado para reafirmar sua disposição para o impeachment e o apoio à marcha de domingo sem, contudo, manifestarem uma única frase, uma só palavra sobre o ódio e a intolerância expostos nas ruas. Não ousaram dizer nada, absolutamente nada, como restrição à presença de tais pessoas e à divulgação de tais ideias. Agiram e agem como se tais expressões estivessem dentro do campo de debate democrático e fossem dele consequência.
Ao que aparenta a postura adotada pelos líderes oposicionistas vale tudo na obcecada ideia de destruir o PT e retirar do governo a Presidenta da República, mesmo que tenha como efeito colateral a derrocada da democracia.
A ausência de ponderação sobre os desdobramentos do momento político que vivenciamos com o ódio destilando pelos poros nas ruas na linha do “fingimos não ver” ou “são poucos e é pouco importante” é atitude lamentável da oposição no Brasil. Deveriam estar atentos para o fato de que quando se tolera abordagens que optem por ameaças e agressões, claras demonstrações de ira e hostilidade contra um grupo ou pessoa, o que se está estimulando, em concreto, são soluções demarcadas fora do jogo democrático.
Os riscos, então, não para o governo e o PT, mas para a institucionalidade. Resta que digam até onde vão para confrontá-la.
Tânia M. S. Oliveira é advogada e assessora técnica da Liderança do PT no Senado