Unida, a vanguarda do atraso coloca o Brasil de volta aos tempos medievaisPor Tânia Maria de Oliveira, assessora da Liderança dp PT no Senado
Há exatos nove meses, ao tomar posse do cargo de presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha proferiu uma daquelas frases próprias dos vencedores de uma disputa: “Muito importante neste momento deixar claro que vamos buscar a altivez do parlamento. Esta Casa é o palco dos grandes debates da sociedade…”
Afora o aforismo e abaixo da superfície, até as paredes da Câmara Baixa sabem que Cunha negociou cada um de seus 267 votos das mais diversas formas, entre as quais se incluíam os projetos conservadores da pauta legislativa. Hoje acossado em um processo que tenta tirar-lhe o mandato diante das acusações da prática de corrupção em processos a que responde no Supremo Tribunal Federal (STF), Cunha já terá, caso saia, deixado sua “marca”.
Conhecida pelo jocoso apelido de BBB (boi, bala e bíblia), a maioria da base parlamentar que elegeu o novo dirigente portava na mala a misoginia, a homofobia, o populismo penal, o fundamentalismo religioso e um indisfarçável desprezo pela diversidade, pelos debates e pela democracia. Se comparado a anteriores, temos uma das legislaturas mais conservadoras dos últimos tempos. Nenhuma altivez foi conferida ao parlamento. Ao oposto, A ges(taç)ão Eduardo Cunha na presidência da Câmara dos Deputados está indelevelmente marcada por gerar retrocessos quase inimagináveis na história de nossa recém-reconquistada democracia. De manobras regimentais para votar novamente a proposta de emenda à Constituição que reduziu a maioridade penal para 16 anos à apresentação e impulso de projetos como “Estatuto da Família”, “criminalização da heterofobia”, “revogação do Estatuto do Desarmamento”, “regras para dificultar o atendimento de mulheres e o direito ao aborto decorrente de estupro”, “transferência para o Congresso Nacional da competência para demarcação de Terras Indígenas”, Cunha alterna sua chamada “pauta-bomba” entre temas que afetam estruturalmente o Poder Executivo e os que suprimem direitos individuais e coletivos, de minorias e grupos vulneráveis.
Uma semana após sua posse, o presidente já colocava em prática o cumprimento das promessas feitas à sua turma: desarquivou projetos anteriormente rejeitados, criou comissões especiais para analisar alguns temas em caráter terminativo (hipótese em que não passam pela apreciação do plenário da Casa). Em nove meses, a Câmara dos Deputados gestou uma série de alterações em legislações que remontam a período anterior à Constituição Federal. Portanto, estamos falando de mais de 30 anos. Os filhos dessa gravidez de risco estão nascendo aos borbotões, diante do espanto da sociedade.
Tempos assombrosos.
Vivemos a revisão da afirmação de direitos e desconstrução de paradigmas que acreditávamos sedimentados, que ultrapassam qualquer senso de responsabilidade. O caminho é o da interdição do debate. O proselitismo fundamentalista está em pleno vigor na política, com bancadas inteiras que se notabilizam pela intolerância e estupidez, com o estímulo à violência contra minorias.
Indivíduos eleitos para cargos públicos, que se comportam como se o Estado fosse confessional, delineiam a formação cristã como fonte universal e inquestionável de moralidade. Não enxergam – ou fingem não enxergar – que a laicidade do Estado está profundamente ligada à democracia, como corolário da liberdade de consciência e crença. Promovem a defesa do uso de armas com jargões e discursos inflamados, fazendo uso da dor das vítimas da violência. Discursam por segurança para camuflar o interesse econômico da indústria armamentista. Não se incomodam com a morte de mulheres por aborto, tampouco com as sobreviventes com sequelas, e tentam evitar que o Estado enfrente a questão com políticas públicas de saúde e leis que não estejam baseadas em credos religiosos ou em verdades sacramentadas.
Buscando a consagração de uma visão heterônoma da própria sociedade, esses indivíduos tentam impedir a demarcação dos territórios indígenas e de quilombolas, populações a quem não reconhecem a diversidade cultural e visões de mundo, mas reputam como atraso ao desenvolvimento.
Mas esses homens e mulheres foram postos no parlamento brasileiro por força do voto. E essa é a dimensão que costuma ser deslembrada. Reporto-me à disposição de parte da sociedade de legitimar os atos praticados por parlamentares como Jair Bolsonaro, Marcos Feliciano, Paulo Telhada, Alberto Fraga, para citar apenas alguns dos mais conhecidos por suas práticas virulentas, exacerbadas e desconstrutivas.
Escrevi há alguns meses um artigo onde pontuava que as ações de Cunha na política simbolizam a própria negação da palavra: https://ptnosenado.org.br/site2017/de-platao-a-cunha-a-negacao-da-politica-abre-espaco-para-a-desfacatez
Esqueci de dizer que há, sem dúvida, um diálogo cotidiano que se estabelece entre segmentos da sociedade e o parlamento de Cunha. A crescente tendência de posturas fundamentalistas reveladas por comportamentos pautados em pressupostos questionáveis, oriundos de diferentes bases, que desembocam em ações de intolerância e violência, física e verbal, do tipo em que dizer o que se deseja, distribuir xingamentos e agressões, tornando a presença do outro no mesmo espaço público algo impossível, passou a ser confundido com autenticidade e liberdade e, afrontando princípios da democracia, tem acontecido cada vez com mais frequência. Tudo se processa como se fatos isolados fossem, em um caminho incontroverso de práticas fascistas cada vez mais sem pudores. Essa fatia da sociedade é a mãe dos filhos de Eduardo Cunha, a que os legitima desde o nascedouro.
Certamente posturas dessa natureza são prenhes de uma análise mais aprofundada, mas em princípio traduzem o vazio de políticas afirmativas e de direitos humanos cimentadas no Brasil, um abismo de valores onde uma sociedade não reconhece uma ideia de humanidade que se desvincule dos particularismos, em que um indivíduo enxergue o outro em sua inteireza, como sujeito de direitos. E, se por um ângulo, não se deixa de reconhecer a liberdade política de votar e de ser votado na democracia material, por outro também é preciso infirmar que não há democracia de fato sem as plenas liberdades civis que garantem o multiculturalismo, e a diversidade racial, religiosa e sexual.
Esse o eixo sobre o qual devemos rejeitar os filhos gestados pela Câmara de Cunha nesses nove meses: por serem a negação do Estado democrático de direito. Inglórios porque destituídos de legitimidade, bastados por simbolizarem, metaforicamente, uma impositiva padronização da sociedade a partir de ideias preconcebidas, retrógradas e excludentes.