Desinformação e ideologia repressiva sustentam ‘clamor’ pela redução da maioridade

Desinformação e ideologia repressiva sustentam ‘clamor’ pela redução da maioridade

Superlotação das penitenciárias pode crescer ainda mais com o maior número de prisões de menores que o projeto da Câmara, se aprovado, acarretaráEm artigo sobre a proposta de emenda constitucional (PEC) que reduz a maioridade penal para os 16 anos, a assessora jurídica da Liderança do PT no Senado, Tânia M. S. Oliveira, adverte: “a redução da maioridade no atual momento da política legislativa é muito grave”. Segundo ela, no texto que segue abaixo na íntegra, “as decisões da Câmara e do Senado vinculam-se ao que a sociedade pensa e, não raras vezes, a despeito de pesquisas que apontam para a ineficácia das medidas implementadas por meio das normas, ou sem que se verifique o impacto legislativo de sua adoção”.

 

Íntegra:

 

Maioridade penal : o debate se avizinha

 

Considerações sobre o debate sobre a PEC da maioridade penal que está pautada na Câmara dos Deputados e a reforma do ECA no Senado

 

Tânia M. S. Oliveira – Liderança PT/Bloco

 

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que analisou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/1993 , chamada de PEC da maioridade penal, aprovou na quarta-feira, dia 17, o parecer apresentado pelo relator, deputado Laerte Bessa (PR-DF). O relatório foi aprovado por 21 votos favoráveis e 6 contrários. A proposta segue para o plenário e deve ser votada em primeiro turno no próximo dia 30, segundo afirmado pelo presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha.

 

Algumas dúvidas sobraram sobre o conteúdo final da votação, diante da assertiva nos meios de comunicação que o relator reformulara o relatório para limitar a hipótese de incidência da PEC a determinados crimes.

 

O texto original da PEC 171/93 é do seguinte teor:

 

“As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal nos termos do Art. 60 da Constituição Federal promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

 

 

Art. 1º. O Art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido de parágrafo único e com a seguinte redação:

 

“Art. 228 – São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial.”

 

Art. 2º. Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação.”

 

O texto aprovado, por sua vez, foi o seguinte:

 

“Art. 1º. O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

 

 

“Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos nos casos de:

 

 

I – crimes previstos no art. 5º, inciso XLIII; 

 

 

II – homicídio doloso;

 

 

III – lesão corporal grave;

 

IV – lesão corporal seguida de morte;

 

V – roubo com causa de aumento de pena.

 

Parágrafo único. Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos cumprirão a pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis”. (NR)”

 

De fato, o texto final praticamente não altera o original, exceto no formato. A limitação é superficial. O rol elencado acima inclui praticamente todas as condutas pelas quais os menores cumprem hoje medida socioeducativa, inclusive o chamado roubo majorado, que é aquele praticado em concurso de pessoas ou com o uso de arma (qualquer arma ou assemelhado), independentemente da prática de violência, e o tráfico, que faz parte art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal e carreia um grande debate na execução penal, que diz com ausência na determinação de critérios na legislação sobre drogas, que definam nitidamente cada situação e os impasses na classificação e diferenciação que vão do mero usuário ao grande traficante. 

 

 

Não é exagero dizer que o texto aprovado da PEC 171 como “substitutivo” tem os mesmos efeitos da proposta original. Somente roubo e tráfico respondem por 66% dos atos infracionais cometidos por adolescentes, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2012.

 

 

O atual momento da política legislativa é muito grave. Em regra, o parlamento brasileiro funciona como caixa de ressonância da chamada opinião pública.  As decisões do plenário da Câmara dos Deputados como do Senado Federal vinculam-se ao que a sociedade pensa sobre os temas e, não raras vezes, a despeito de pesquisas que apontam para a ineficácia das medidas implementadas por meio das normas, ou sem que se verifique o impacto legislativo de sua adoção.

 

Pesquisas mostram que o apoio popular à redução da maioridade penal parte do pressuposto de que menores não são punidos, um erro de princípio, já que entre as medidas socioeducativas encontra-se a internação.

 

Por sua vez, o modelo habitual que se usa para auscultar a sociedade é altamente questionável. Além de partir de premissa errada e direcionar as perguntas como se todos os menores cumprissem medida socioeducativa por homicídio, o questionário funciona como atribuição de causalidade às manchetes sensacionalistas, sem a compreensão ou o acompanhamento dos efeitos reais que uma medida como o abaixamento em dois anos na idade penal pode causar.

 

Noutro giro, a desinformação que sustenta a tese sobrevive sem que se faça uma campanha de esclarecimento para mostrar os centros de internação juvenil, muitos dos quais verdadeiras prisões com todas as suas mazelas, e a despeito do fato de sermos um dos poucos países do mundo que encarcera a partir dos 12 anos de idade.

 

 

Nessa segunda-feira (22) o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP divulgou uma importante pesquisa onde aponta o problema de superlotação nas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Segundo o relatório, o sistema oferece 18.072 vagas, mas abriga 21.823 internos – um deficit de 20,75% de vagas.

 

 

Anote-se que a superlotação no sistema carcerário é ainda mais significativa. Existem 1,7 preso para cada vaga, segundo os dados do Mapa do Encarceramento, divulgado no dia 03 de junho passado, em pesquisa realizada pelo PNUD e Secretaria de Juventude da Presidência da República.

 

 

De fato, nada mudará com a redução da maioridade penal, exceto o destino dos autores dos crimes. O jovem de 16 anos que é encaminhado hoje para o sistema socioeducativo será conduzido a um presídio. A partir deste ponto não haverá mais política de recuperação, mas sua adoção pelas facções criminosas. Ao invés de aulas obrigatórias terá a formação dos comandos, o aprendizado na escola do crime.

 

 

É seguramente uma forma de aumentar a violência, jamais de diminuí-la.

 

 

No entanto, a ausência de uma reflexão teórico-filosófica sobre o sistema criminal representa uma facilidade ao método de cálculo em que o empírico se basta, o que, em se tratando da produção legislativa, aliás, se aproveita não só pra o debate da redução da idade penal, mas para todos os temas em Direito Penal. Assim, o pensamento que reflete sobre o comportamento humano é devorado, no campo criminológico, pela voracidade de um discurso que não exige fundamentação, que desconsidera os números e fala, cinicamente, por si mesmo.

 

 

A desinformação apresenta-se, desse modo, como fruto de um projeto de dominação ideológica, em que tanto as redes sociais, quanto os veículos de comunicação tradicionais são empregados para difundir prioritariamente fórmulas de solução despidas de qualquer senso de realidade, como suposta resposta ao “clamor social”.

 

A sociedade, de fato, está sendo enganada. Mentem os que vendem a ideia de que alterações legislativas alteram os números da violência. A asserção aposta no tamanho da pena e na efetividade do sistema carcerário como instrumento de coibição do crime, o que é desmentido diuturnamente pelas estatísticas de reincidência. Ao oposto, as condições de encarceramento no Brasil são impeditivos da ressocialização, retroalimentando a transgressão.

 

Na outra ponta, o debate sobre a reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que poderia ser feito de forma serena e centrada, somente aparece como forma de barrar o “mal maior”, em meio ao conflito já posto, o que lhe confere o papel insensato e lamentável de “moeda de troca”.

 

Mesmo o mais ferrenho defensor dos direitos dos adolescentes aponta suas dúvidas sobre a razoabilidade de tratar igualmente menores de 12 e de 17 anos, e manter três anos como período máximo de internação para qualquer conduta. Sobremaneira porque aquelas praticadas com violência, pelas estatísticas, aparecem a partir dos 15 anos, salvo raríssimas exceções. O tratamento igual coloca em questão o próprio princípio da proporcionalidade, que, mesmo sendo um critério de matéria penal, deve nortear todas as ações de política pública de segurança, com vistas a evitar distorções no sistema.

 

É legítimo que os movimentos envolvidos nas pautas defendam o instrumento legislativo que sustenta a afirmação de direitos. Em regra, a construção de uma lei de conteúdo social advém de intensas altercações e muitas disputas. Não seria diferente com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Ele foi uma conquista, resultado de uma ampla mobilização social. Com base em estudos de diversas áreas do conhecimento, sobretudo da psicologia e sociologia, foram edificados os marcos da proteção à infância e à adolescência na Lei 8.069/1990,  regulamentando os direitos previstos na Constituição Federal de 1988.

 

Ocorre que, no atual momento de disputa política não cabe o axioma de conceber essa norma como se fosse um instrumento legal imune a críticas, haja vista que a resistência em aperfeiçoá-lo junto a não efetivação dos dispositivos na lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase (Lei 12.594/2012) calçaram o caminho para que a PEC da redução avançasse, sob os auspícios da direita, sacramentada na Câmara dos Deputados com o jocoso apelido de “bancada BBB” – boi, bala e bíblia – e com a benção de seu presidente.

 

É nesse contexto que se insere, no Senado, o debate no PLS 333/2015, de autoria do senador José Serra e com substitutivo apresentado pelo senador José Pimentel. O projeto se encontra na pauta do plenário.

 

 

Não é um projeto cheio de virtudes. O substitutivo, no entanto, buscou aproximá-lo, tanto quanto possível, da ideia perseguida na concepção do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se traduz na reeducação e a ressocialização do adolescente infrator. O substitutivo modifica o prazo máximo de cumprimento da medida de internação, originalmente em 10 para 8 anos, estabelece obrigatoriedade do cumprimento da internação em local diferenciado do regime adulto, e, sobretudo, sedimenta que a alteração só ocorrerá para a práticas de crimes hediondos cometidos com violência ou grave ameaça, nesse caso para evitar os menores “aviõezinhos” do tráfico, e na compreensão que toda a controvérsia se estabelece a partir da prática de crimes violentos contra a vida.

 

 

Há muito a ser ponderado. Mas é dado que para fazer uma reforma que se proponha a enfrentar os problemas, urge que se discuta de forma serena e cuidadosa quais os caminhos e soluções possíveis. Se o que se deseja é tornar o sistema mais justo e eficiente para todas as partes envolvidas: as vítimas, os autores e as famílias, é preciso estabelecer parâmetros e apresentar propostas. O aumento do prazo de responsabilização para atos infracionais graves não deve, por óbvio, aparentar ser mais uma saída fácil, porque a segregação de adolescentes em conflito com a lei nunca poderá ser tida como uma resposta unilateral, abstraída do objetivo de criação das medidas socioeducativas, que foram concebidas levando em conta o caráter educativo, além do punitivo. 

 

 

Leia mais:

 

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2012

 

Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP

 

Secretaria de Juventude da Presidência da República

Reduzir a maioridade penal não diminuirá problema da violência, diz Fátima
“Não tentemos dar soluções fáceis a problemas complexos”, diz Gleisi sobre maioridade penal

 

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