Eleita mulher do ano pelo Financial Times, Dilma critica a “PEC da morte” e a misoginia na política

Eleita mulher do ano pelo Financial Times, Dilma critica a “PEC da morte” e a misoginia na política

O jornal britânico Financial Times elegeu a presidenta Dilma Rousseff como uma das “mulheres do ano” em 2016. Dilma se destacou por sua “capacidade de resiliência em meio ao processo de impeachment”. Ela aparece ao lado da primeira-ministra britânica Theresa May, da candidata democrata à presidência americana, Hillary Clinton e da ginasta olímpica americana Simone Biles.

O jornal também publicou uma longa entrevista com a presidenta, na qual ela critica a “loucura” de Temer em propor o congelamento dos investimentos públicos por 20 anosa, com a PEC 55 — um verdadeiro “suicídio”, como ela descreveu — e denuncia os componentes misóginos da política. “Uma mulher em posição de autoridade é apontada como ‘dura’. Um homem  nas mesmas condições é ‘firme.

Leja a íntegra da entrevista de Dilma ao Financial Times

 

Tradução: Cyntia Campos
08 de dezembro de 2016 | 17:40h

Financial Times

Dilma Rousseff: “Uma mulher que exerce a autoridade é ‘dura”, enquanto um homem é chamado de ‘forte”

A ex-presidente do Brasil foi afastada do cargo este ano ao cabo de uma extenuante batalha. Ela fala sobre essa desconcertante virada e seus planos para o futuro

Por John Leahy

Para uma mulher que acaba de enfrentar exaustivos seis meses de uma batalha política que culminou em seu impeachment, a ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff parece excepcionalmente relaxada. A primeira mulher a presidir o maior dos países da América Latina entrou na suíte de um hotel em Porto Alegre trajando seu costumeiro terninho, brincando e exercitando algum lirismo a respeito de sua mais nova paixão — pedalar.

“A melhor coisa que uma pessoa pode fazer é pedalar”, afirma Rousseff, de 68 anos, explicando como passeia com sua mountain bike de manhã cedinho, todos os dias, à beira do Guaíba. Ela voltou a viver na cidade onde começou a carreira política após o impeachment, em agosto, para ficar perto da filha e dos dois netos. “Caminhar é bom, mas a bicicleta dá uma sensação de liberdade muito maior”.

O lado sério de Dilma — uma ex-guerrilheira marxista que ganhou a presidência em 2010 com o apoio daquele que era, à época, o mais bem-sucedido movimento de trabalhadores no planeta, o PT — nunca está muito distante, porém.

Ela exibe uma indignação furiosa, por exemplo, diante de qualquer menção ao governo que a sucedeu, liderado por seu antigo vice e hoje inimigo político Michel Temer.

“É um governo de homens brancos, velhos e ricos, ou pelo menos de aspirantes a ricos”, define ela, aludindo a uma longa lista de denúncias de corrupção contra os integrantes da coalisão em torno de Temer.

Rousseff pode estar ainda abalada com a virada em seu destino—uma virada equivalente à vivida por seu país, que foi de milagre econômico emergente à decepção no espaço de poucos anos.

Afastada do cargo em maio, ela foi definitivamente deposta em agosto, após o Senado tê-la considerado culpada de uma série de manobras fiscais de difícil compreensão usadas para alavancar a economia e disfarçar a piora do déficit fiscal do Estado.

Embora ela alegue que presidentes anteriores usaram os mesmos truques orçamentários, seu governo foi o primeiro, desde a II Guerra Mundial, a ter as contas rejeitadas pelo cão de guarda das finanças públicas, o TCU. No fim, seu impeachment foi um julgamento político – a verdadeira razão para afastá-la do poder foi sua queda de popularidade em meio ao aprofundamento da recessão e ao escândalo de corrupção na petroleira estatal Petrobras.

É um contraste gritante entre a sua posição, há seis anos, quando ela desfrutava de índices de popularidade que seriam motivo de inveja para qualquer líder mundial. Ela foi a mulher que finalmente quebrou a barreira na política brasileira, que se posicionou como a defensora das minorias e dos pobres, por meio de programas como o “Brasil Sem Miséria” –  escalando assistentes sociais em busca dos excluídos para assegurar que fossem inscritos em programas sociais.

“Acredito que a oligarquia tradicional brasileira estava incomodada com essa pequena redistribuição de riqueza”, diz Rousseff. “Depois de séculos de exclusão, era um esforço muito pequeno. Não era nada extraordinário. É preciso fazer ainda muito mais do que fizemos”.

A imagem pública de Rousseff é de uma liderança mal-humorada, um pouco inclinada às gafes. Pessoalmente, porém, ela se apresenta informal e amigável. Ela é famosa pelo uso indiscriminado da palavra “querido” durante as conversas.

Mais uma tecnocrata que uma política nata, ela nunca está mais feliz do que quando discute os mínimos detalhes de um orçamento federal, apoiada por um PowerPoint.

Outra qualidade que a define é o dogmatismo, que começou a se manifestar nela desde muito cedo. Nascida em 1947 em Belo Horizonte, filha de uma professora e de um advogado búlgaro comunista, ela começou seu combate à ditadura militar com apenas 16 anos. Ela conheceu o advogado Carlos Franklin Paixão de Araújo, hoje seu ex-marido e pai de sua única filha, antes de ser encarcerada por três anos pelos militares, em 1970. Ela foi torturada, uma experiência que, como perceberam seus oponentes durante o impeachment, a tornou dura na queda.

Depois disso, assumiu uma série de cargos burocráticos no Rio Grande do Sul e, posteriormente, ocupou postos ministeriais no governo de seu antecessor e mentor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seu primeiro cargo eletivo foi a Presidência da República, conquistada em 2010.

De Lula, ela herdou uma economia que crescia a taxas em torno dos 4% ao ano. Seu sucessor Temer recebeu o país com uma economia que decresceu, este ano, um percentual semelhante, na pior recessão vivida pelo Brasil em mais de um século.

Economistas do setor privado responsabilizam diretamente Rousseff por essa situação. Embora o Brasil tenha sido atingido pela crise de desvalorização das commodities, eles alegam que foram as políticas intervencionistas levadas a cabo por ela – como as tentativas de controlar as tarifas dos combustíveis e da energia elétrica – que minaram a confiança dos investidores.

Mas quem espera o mea culpa vai se decepcionar. Ela diz que a crise econômica no Brasil é resultado da crise global, ao mesmo tempo em que o Congresso boicotou suas tentativas de aprovar reformas, entre elas, o aumento de impostos para estancar a explosão do déficit orçamentário.

Ele avalia que a proposta de Temer de congelar o orçamento público por 20 anos é loucura. “Durante uma recessão, a política de austeridade é suicídio”, afirma. “No curto prazo, é preciso ampliar o investimento público”.

Ela chama seu impeachment de “golpe”. Mas, então, porque não montou barricadas no palácio presidencial, uma das obras primas do arquiteto Oscar Niemeyer, uma resistência que poderia ser a alternativa adotada pela jovem guerrilheira Rousseff? A ex-presidente responde que a luta de hoje é diferente. Por toda parte, o “neoliberalismo” está corroendo os alicerces da democracia. A melhor maneira de enfrentar essa ameaça é se amparar nas instituições democráticas, como quando ela compareceu ao Senado, no julgamento de impeachment, para enfrentar seus adversários.

“Por que eu resisti à tentação de me amarrar a uma das colunas de Niemeyer no Planalto? Porque nesta fase, a melhor arma é a crítica, o diálogo, o debate. A verdade é o oxigênio da democracia”.

As pessoas que trabalharam com ela dizem que, ao contrário de muitos políticos brasileiros, ele pessoalmente não é corrupta. Seu calcanhar de Aquiles, porém, é sem dúvida a Petrobras, de acordo com seus críticos. Rousseff dirigiu a petrolífera entre 2003 e 2010, como presidente do Conselho de Administração da empresa e como ministra de Minas e Energia. Uma profunda investigação na estatal, conhecida como Operação Lava Jato, revela que alguns executivos da Petrobras conspiraram com a coligação governamental liderada pelo PT e com empreiteiras para extrair da companhia bilhões de dólares em propinas, no tempo em que ela estava à frente da estatal.

Rousseff não é acusada de qualquer crime e sustenta que nunca suspeitou de nada—apesar de uma investigação do Congresso sobre a empresa, em 2009, quando ela ainda era dirigente da estatal, e dos custos altamente inflados dos projetos da empresa. “A corrupção é praticada nas sombras, com os autores fazendo o possível para cobrir seus rastros”, insiste. Ela acrescente que se não fossem as reformas que ela fez para combater a corrupção, tais como a lei das delações premiadas, talvez a Lava Jato sequer estivesse acontecido.

E quanto ao futuro? “Eu não pretendo disputar mais qualquer eleição, mas vou continuar com a minha atividade política”, ela diz. Rousseff é integrante do Conselho da Fundação Perseu Abramo, um instituto ligado ao PT, e planeja viajar ao exterior para denunciar os retrocessos que vêm sendo impostos ao país pelo governo Temer.

Para as mulheres, ela desejou deixar o legado de um mandato bem-sucedido, não um impeachment. “De qualquer modo, deixo como legado às mulheres a minha trajetória. Digo que nós, mulheres, não somos de desistir ou de nos curvarmos ante as adversidades”.

Mulheres sempre sofrem algum grau de discriminação, mesmo “nas mais civilizadas das sociedades”, afirma ela. Rousseff era frequentemente acusada de ser uma dama de ferro, apontada como tão “dura” que fazia chorar os ministros que não faziam direito a lição de casa.

“Quando você é uma mulher em posição de autoridade, dizem que você é dura, seca e insensível, enquanto um homem na mesma condição é forte, firme e encantador”, diz ela. Dilma brinca que o mais frustrante em tudo isso era ser pintada como uma ogra, enquanto os homens no mundo da política são apresentados como se cheirassem a rosas.

“Um dia, depois de cansar de ouvir quão dura eu era, eu ironizei que, sim, claro, eu sou uma mulher dura cercada de homens doces. Todos eles, dulcíssimos”.

Joe Leahy é chefe de escritório do Financial Times no Brasil. Reportagem adicional de Carina Rossi

 

Fotos: Raquel Espírito Santo

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