Gleisi e sociólogo comparam Brexit ao sonho golpista de abandonar o Mercosul

Gleisi e sociólogo comparam Brexit ao sonho golpista de abandonar o Mercosul

A senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) e o sociólogo Marcelo Zero, assessor da Liderança do PT no Senado, conduzem à reflexão em artigo que compara a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) com a verborragia do ministro das Relações Exteriores do golpista Michel Temer, José Serra, contra o Mercosul. “ (…) áreas de livre comércio não constroem cidadanias e direitos para superar desigualdades e assimetrias, nem erguem muros para lidar com elas, como se faz no Nafta. Talvez seja desejo do governo golpista erguer um muro que nos separe de países como Paraguai e Bolívia”, escrevem os autores, que também denunciam o plano dos golpistas de voltar a ser satélite controlado por terra pelos Estados Unidos.

Leia, na íntegra:

Braxit: o Golpe Contra o Mercosul e o Brasil

Gleisi Hoffmann e Marcelo Zero

A saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, provocou uma onda mundial de espanto e críticas.

Muito embora a lógica da integração europeia, inspirada originalmente nos ideais da socialdemocracia, venha sendo deturpada pelas políticas austericidas da Troika, que penalizam os países e as populações mais pobres da Europa, a saída não está na desintegração da União Europeia, mas sim em sua reforma democrática.

Além disso, no caso do Reino Unido, a decisão pelo abandono da UE não foi provocada pela oposição às políticas ortodoxas e socialmente regressivas de Merkel e companhia. Na verdade, ela foi ocasionada pela manipulação, por forças extremamente conservadoras, de sentimentos xenófobos, anti-imigrantes e racistas.  O Brexit foi uma saída à direita, que terá profundas implicações negativas na economia e na sociedade britânica.

Mas o Brexit poderá não ser o único ataque da direita contra processos de integração que envolvem a construção de um mercado comum e de uma cidadania comum.  Além de possíveis novas defecções na UE, ensaia-se, no Mercosul, bloco que se inspira na integração europeia, o Braxit, a saída do Brasil.

Trata-se, também, de uma saída pela direita, motivada pelos interesses de uma pequena minoria e inspirada por uma profunda ignorância sobre o significado do Mercosul e da integração regional para o Brasil.

É claro que a oposição conservadora ao Mercosul não é nova. Ela existe desde o Tratado de Assunção, que criou o bloco, em 1991. Para os nossos setores econômicos mais internacionalizados e dependentes de rendimentos financeiros, que configuram o que o economista argentino Jorge Beinstein denomina adequadamente de “lumpenburguesia”, a constituição de uma união aduaneira e de um mercado comum regional sempre foi vista como um estorvo que atrapalharia a integração “verdadeiramente relevante” à “globalização” e aos países mais desenvolvidos. O grande negócio era a Alca; não o Mercosul.

Entretanto, o golpe no Brasil levou ao poder setores políticos que, além de não terem votos, não têm visão estratégica do papel do País no mundo.

É de conhecimento que geral que o chanceler do golpe considera que o Mercosul é uma “farsa” e um “delírio megalomaníaco” que impede o Brasil de alçar voos maiores no comércio mundial. Assim, a política externa do governo golpista pretende acabar com a união aduaneira do bloco, de modo a permitir que todos os países possam negociar acordos extrarregionais de forma livre e independente, o que contraria o Artigo I do Tratado de Assunção e levaria o bloco ao seu esfacelamento.

Ora, como na União Europeia, a união aduaneira é a base da constituição do mercado comum. E o mercado comum, por sua vez, embasa todos os outros vetores da integração: a livre circulação de trabalhadores, o combate às assimetrias internas, as políticas conjuntas para as fronteiras, o meio ambiente, a educação e a cultura, a coordenação macroeconômica, a harmonização das legislações dos Estados Partes e a criação de instituições supranacionais. O mercado comum também intenta dar forma e vida a uma estratégia conjunta de inserção no cenário mundial, a qual busca tornar mais exitosa e soberana a participação dos Estados Partes na economia internacionalizada.

Além disso, sem a união aduaneira e o mercado comum, não há o menor sentido em se criar a cidadania comum bloco, tarefa que cabe ao essencialmente ao Parlamento do Mercosul.

Portanto, sem a união aduaneira, o Mercosul deixaria de ser um projeto que visa à construção de um mercado comum e se transformaria inevitavelmente na Alcasul, uma mera área de livre comércio sem estratégia própria, destinada a ser absorvida na órbita geopolítica da única superpotência mundial. Uma área de livre comércio sem livre circulação de pessoas, sem políticas conjuntas, sem combate às assimetrias internas e sem cidadania comum.

Afinal, áreas de livre comércio não constroem cidadanias e direitos para superar desigualdades e assimetrias, erguem muros para lidar com elas, como se faz no Nafta. Talvez seja desejo do governo golpista erguer um muro que nos separe de países como Paraguai e Bolívia.

O fim da união aduaneira é o fim da integração cidadã. É o fim do Mercosul.

O pior, contudo, é que os que propõem o fim do Mercosul o fazem por ignorância. O novo chanceler, que queria que o Congresso Nacional denunciasse o Tratado de Assunção, desconhecendo, assim, noções elementares sobre a Constituição brasileira, desconhece também dados básicos do comércio exterior do país que diz representar.

O Mercosul nunca foi um bloco “autárquico” e “paralisado”, como gostam de afirmar equivocadamente os seus críticos.

Em 2002, exportávamos somente US$ 4,1 bilhões para o Mercosul. Já em 2013, incluindo a Venezuela no bloco, as nossas exportações saltaram para US$ 32,4 bilhões. Isso significa um fantástico crescimento de 617%, mais de sete vezes mais, em apenas 11 anos. Saliente-se que, no mesmo período, o crescimento das exportações mundiais, conforme os dados da OMC, foi de “apenas” 180%. Ou seja, o crescimento das exportações intrabloco foi, no período mencionado, muito superior ao crescimento das exportações mundiais. Saliente-se que, nesse período, o Mercosul firmou 10 acordos de livre comércio regionais, inclusive com os Estados que compõem a Aliança do Pacífico, os quais possibilitarão que, até 2019, toda a América do Sul faça parte de uma grande área de livre comércio.

Ademais, entre 2003 e 2014, o Mercosul nos deu um extraordinário saldo positivo de mais de US$ 90 bilhões, sendo que com a Associação Latino-americana de Integração (Aladi), que inclui o Mercosul, tivemos um saldo positivo de US$ 137, 2 bilhões. Com outras regiões, obtivemos um saldo mais modesto. Observe-se que, se somarmos os saldos dos BRICS, da União Europeia e dos EUA, temos um saldo acumulado de aproximadamente US$ 120 bilhões. Portanto, a Associação Latino-Americana de Integração, cujo principal bloco é o Mercosul, nos deu um saldo comercial positivo superior ao obtido com os EUA, a União Europeia e os BRICS, combinados.

Mas a principal característica de nossos fluxos comerciais com o Mercosul e a Aladi tange ao grande percentual de produtos manufaturados que exportamos para a região. Com efeito, esse dinamismo do Mercosul e da integração regional tem, para o Brasil, uma vantagem qualitativa e estratégica. É que as exportações brasileiras para o bloco são, em mais de 90%, de produtos industrializados, com alto valor agregado. Exportamos para o bloco automóveis, máquinas agrícolas, material de transporte, celulares, etc. Em contraste, no que tange às nossas exportações para a União Europeia, a China e os EUA, os percentuais de manufaturados são de 36%, 5% e 50%, respectivamente. Portanto, o Mercosul compensa, em parte, a nossa balança comercial negativa da indústria.

Ora, a consequência inevitável do fim da união aduaneira, como propõe a “despolítica” externa do governo golpista, será a perda desse mercado extraordinário para a nossa indústria de transformação. Em pouco tempo, a região será inundada por bens industrializados americanos, europeus e chineses. Da nossa indústria, só sobrarão os poucos setores internacionalizados e “financeirizados” da “lumpenburguesia”. Da produção nacional, restará apenas o agribusiness, que continuará a enfrentar as insuperáveis barreiras não alfandegárias impostas pelos países mais desenvolvidos. Seremos, como o México, um país de “maquiladoras”, que se integrará às “cadeias mundiais de valor” na condição de produtor de insumos básicos e fornecedor de mão de obra barata.

Dificilmente um erro grotesco como esse do abandono do Mercosul, o Braxit, seria aprovado no contexto correto de uma eleição democrática. Porém, o golpe em curso no Brasil permite que essas e outras abominações sejam levadas a sério.

Temos no Brasil de hoje um “lumpengoverno” sem rumo, sem credibilidade, sem voto, sem projeto nacional e sem estratégia que balize uma política externa coerente. É um governo que não constrói nada. Só desconstrói o que foi feito. No caso da política externa anterior, muito bem feito.

Mas o “lumpengoverno” do golpe ataca também o Mercosul de duas outras formas, além do Braxit.

Ataca a cidadania do bloco, pois pretende desconstruir uma série de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais que fazem parte do patrimônio cívico dos cidadãos do Mercosul, representados no Parlamento do Mercosul.

E ataca, com um golpe mortal, o fundamento último do Mercosul: a democracia.

Com efeito, foi a democracia que criou, após o fim das ditaduras militares, o Mercosul e o projeto estratégico da integração soberana e cidadã. Portanto, o golpe em curso no Brasil é, em si mesmo, afronta grave ao Mercosul e à integração regional.

O Brexit, ao menos, foi decidido em referendo. Trata-se de uma decisão democrática, embora profundamente equivocada.

O Braxit é muito pior. Além de grotescamente equivocado, ele é proposto por um governo sem voto e sem credibilidade, que representa apenas uma “lumpenburguesia” dependente, entreguista e antinacional.

O Braxit é um golpe contra o Brasil e sua democracia. 

 

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