Havia uma dúzia de manifestantes no casminho da missão midiática frustrada na Venezuela: senadores brasileiros, agora, defendem protestos como uma prerrogativa da direitaNa última quinta-feira, senadores da oposição mobilizaram os amigões da mídia para a visita que pretendiam fazer a presos na Venezuela – condenados pela Justiça, diga-se.
Mas a disposição esmoreceu diante do trânsito ruim, provocado por um acidente que aconteceu muito tempo antes da chegada dos visitantes, e do protesto de menos de uma dúzia de manifestantes.
Resumo da ópera: o que seria um retumbante feito de mídia, comenta Marcelo Zero no artigo abaixo, terminou se tornando um protesto contra o tráfego ruim de Caracas, a capital venezuelana.
O Engarrafamento Bolivariano – Marcelo Zero
Aos que tentavam politizar todas as manifestações culturais, o grande crítico Sérgio Augusto costumava perguntar se o violão do Baden Powell era de direita ou de esquerda.
Há, de fato, coisas que não podem ser politizadas. Como o etéreo violão do Baden Powell, ou como as leis de ferro da física.
Um bom exemplo dessas últimas é a lei da impenetrabilidade da matéria, formulada, entre outros, por Newton, a qual afirma que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
É a lei que explica os engarrafamentos de trânsito. Com pouca pista (espaço) e muitos veículos (corpos) o trânsito invariavelmente engarrafa. Principalmente quando há acidentes.
Foi o que aconteceu manhã da última quinta-feira, em Caracas. Conforme todos os jornais venezuelanos, inclusive os da oposição, que funcionam livremente, uma carreta carregada de farinha tombou na já normalmente complicada autopista que liga Caracas ao seu aeroporto, provocando um enorme engarrafamento de trânsito.
Isso é um fato. Não é de esquerda e nem de direita. Simplesmente é.
Também é fato que, numa democracia, todos têm direito à manifestação. Pode parecer estranho para alguns, mas a Constituição da Venezuela, aprovada em referendo por mais de 70% da população, assegura, até mesmo aos chavistas, o direito à opinião e à manifestação.
Direitos são direitos. Não são de esquerda nem de direita. E democracia é democracia para todos. Não é prerrogativa exclusiva da direita.
Da mesma forma, é um dado da realidade que todos, de direita ou de esquerda, podem cometer equívocos. Esse parece ter sido o caso da flamante comissão senatorial que foi a Caracas na última semana.
Para ficar no terreno reconfortante dos eufemismos, era uma comissão que tinha pouco de elevada diplomacia parlamentar e demasiado de comezinha política eleitoral. Aparentemente, foi lá exportar o embate político interno do Brasil a um país já dilacerado por disputa intestina. Não foi lá para dialogar com as forças políticas responsáveis, apaziguar ânimos, propugnar pela solução à questão dos presos e, sobretudo, evitar mais violência e mortes, como faz a Reunião de Chanceleres da Unasul, da qual participa o Brasil. Conscientemente ou não, foi jogar mais lenha na descontrolada fogueira venezuelana. Tudo o que a Venezuela não precisava e não precisa.
Países que passam por crise grave e que estão à beira de uma guerra civil aberta precisam de bombeiros, não de incendiários, sejam de direita ou de esquerda. Isso também é fato.
Mas tem gente confundindo fato com ficção e Isaac Newton com Hugo Chávez.
É claro que se deve lamentar o constrangimento passado pela comissão de senadores brasileiros na Venezuela. Afinal, era formalmente uma comissão oficial do Senado, embora fosse, na realidade, uma comissão da oposição brasileira que foi lá se encontrar exclusivamente com as lideranças mais radicalizadas da oposição da Venezuela, as quais assumidamente querem derrubar o governo eleito de Maduro a qualquer custo, inclusive mediante o recurso à violência. É o beco sem saída do La Salida, proposto abertamente por Leopoldo López. Após o seu anúncio, oito chavistas foram assassinados na Venezuela. Outro fato.
Porém, lamentar o ocorrido, e pedir as explicações de praxe, não pode se confundir com uma concordância com a tese delirante de que o episódio foi ocasionado por um grande complô armado pelo governo da Venezuela, em conluio com o governo brasileiro e o Itamaraty.
Ora, o governo brasileiro, mesmo sabedor do caráter, assim digamos, pouco equilibrado da comissão, deu todo o apoio à empreitada senatorial. O ministro Jacques Wagner providenciou o confortável jatinho e negociou exitosamente, com seu homólogo, o sobrevoo e o pouso da aeronave recheada de excelências. Fatos confirmados pela própria comitiva.
O embaixador brasileiro em Caracas cumpriu rigorosamente o protocolo previsto em tais ocasiões. Alugou as vans para a comitiva, providenciou a devida escolta policial e recebeu os senadores no aeroporto. Não acompanhou a comitiva porque não lhe cabia. Ademais, seria insensato fazer parte de uma comitiva em que estavam presentes representantes da oposição mais radical da Venezuela. O embaixador representa o Estado brasileiro e, como tal, tem de manter equidistância das forças em conflito. Não cabe ao embaixador do Brasil se meter nos assuntos internos da Venezuela. A comitiva foi avisada, com anterioridade, que o embaixador não acompanharia a comissão até a prisão, e entendeu perfeitamente os óbvios argumentos diplomáticos.
Afinal, a não ingerência nos assuntos internos de um país é um princípio básico da diplomacia que não é nem de direita, nem de esquerda.
Também não cabia ao embaixador do Brasil revogar as leis da física e remover magicamente o engarrafamento bolivariano. Ou mandar prender os poucos manifestantes chavistas que foram ao aeroporto protestar contra o assassino de uma professora grávida, que morreu nas democráticas guarimbas organizadas por ordem de Leopoldo López, as quais já mataram 43 venezuelanos, na maioria chavistas ou gente sem filiação política. Entre os mortos, há, inclusive, sete policiais venezuelanos, três deles executados com tiros na cabeça. Fatos macabros.
Morte é morte. Não é de esquerda e nem de direita. Fato sobejamente conhecido.
Outro fato que deveria ser do conhecimento da comitiva de parlamentares brasileiros é que o senhor Leopoldo López foi um dos signatários do decreto que, no golpe de 2002, cassou os mandatos de todos os parlamentares da Venezuela. Algo muito parecido com o nosso AI-5. Fato pouco democrático.
Quanto ao governo Maduro, cabe perguntar o que ele ganharia com isso. Com efeito, a comissão, caso tivesse tido êxito, teria caído no merecido olvido reservado aos equívocos políticos. Adquiriu toda essa notoriedade graças ao seu providencial fracasso.
Outras autoridades internacionais, como Felipe González, já tinham visitado Ledezma e outros acusados pela justiça por incitação à violência, sem nenhum problema.
Se Maduro tivesse querido demonstrar força ante a comissão senatorial, teria facilmente convocado 400 mil chavistas ao aeroporto, não 40. Também não parece factível que Maduro tenha ordenado paralisar o trânsito de Caracas para irritar Aécio e companhia. Essa hipótese simplesmente carece de bom senso e transborda megalomania e paranoia.
E o bom senso não é de esquerda nem de direita. Não é de bom senso politizá-lo.
Agora, os senadores, irritados com o engarrafamento e magoados com a manifestação, que abalou egos, mas não a segurança, querem tirar a Venezuela do Mercosul, sob a alegação que houve ruptura da ordem democrática, conforme prevê o Protocolo de Ushuaia. Também insistem em acusar o governo brasileiro e o Itamaraty pelo fracasso anunciado da intrépida comissão. Querem até levar o caso à OEA e processar Dilma no STF.
O engarrafamento bolivariano e a gigantesca manifestação chavista seriam, aparentemente, as provas definitivas dessa ruptura e do complô comunista binacional.
O senso do ridículo não é apanágio da esquerda ou da direita. Ou não deveria ser.
Marcelo Zero é assessor da Liderança do PT no Senado